Nulidade absoluta e boa-fé objetiva processual

O Supremo Tribunal Federal reconhece, já há algum tempo, a força normativa do princípio da boa-fé processual, como corolário do direito fundamental a um devido processo justo (RE 464963, Rel. Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 14/02/2006, DJ 30-06-2006).
No dia 13 de setembro de 2011, indo mais além, o STF deu à boa-fé processual papel que há algum tempo parecia impensável.
Cuidava-se do Habeas Corpus n. 105.041 impetrado pela Defensoria Pública cujo pedido de tutela jurisdicional consistia na declaração de nulidade de julgamento de apelação criminal interposta no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Sustentava-se cerceamento de defesa, em razão da ausência de intimação prévia da Defensoria do julgamento do recurso.
Embora tenha qualificado como absoluta a nulidade, o STF decidiu, por unanimidade, não anular o ato. Tudo por força da alegação tardia, em afronta a um padrão objetivo de comportamento processual, que reclama das partes diligência na sinalização para os vícios do processo já percebidos e prontamente alegáveis.
A decisão é muito importante. Adota posição bastante diversa daquela assumida pela teoria clássica das invalidades processuais, reproduzida com relativo consenso pela processualística (cf., criticamente, Fredie Didier, Curso de Direito Processual Civil, 2013, p. 305). Afeta não somente o processo penal, como também o processo civil, processo do trabalho etc.. Não mereceu, contudo, a atenção devida pela doutrina processual civil.
Segundo o Ministro Gilmar Mendes, “é evidente que se trata de nulidade absoluta, mas também é evidente que não houve alegação no tempo devido. O que essa prática suscita é a possibilidade de se guardarem nulidades para serem arguidas, o que resulta em um não respeito à lealdade processual” (leia aqui).
Dentre diversas classificações, as nulidades podem ser absolutas ou relativas. As nulidades absolutas podem ser alegadas a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, independentemente de exceção processual, podendo, até, ser conhecidas de ofício. As nulidades relativas, por sua vez, não podem ser conhecidas de ofício pelo magistrado, devem ser vinculadas por exceção e, pois, devem ser suscitadas no primeiro momento que as partes dispõem para tanto. Foi esta a classificação adotada pelo STF no julgamento.
Seja como for, o STF afastou, no caso, verdadeiro dogma da ciência processual, em nome de outros valores postos em confronto: deixou de declarar a nulidade de um ato por vício gravíssimo, em regra suscitado a qualquer tempo, em nome da boa-fé processual, que deve nortear a atuação das partes em juízo. Em síntese, aplicou o regime das preclusões também para as nulidades absolutas.
O STF procedeu a um verdadeiro juízo de ponderação, fazendo prevalecer, no processo, a boa-fé processual, em confronto com o contraditório e à ampla defesa (cf. Fredie Didier e Pedro Henrique Pedrosa Nogueira, Teoria dos Fatos Jurídicos Processuais, 2011, p. 90). A decisão cresce em importância ao se considerar tratar-se de vício em processo penal, em que os bens jurídicos tuteláveis recebem tratamento especial, com maior recrudescimento do formalismo em nome da segurança em confronto com a efetividade processual.
O entendimento, que se poderia supor isolado, tem sido adotado também e reiteradamente no Superior Tribunal de Justiça (STJ), conforme demonstra o seguinte julgado, bastante recente:
“HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO. CONDENAÇÃO. JULGAMENTO DO RECURSO DE APELAÇÃO. FALTA DE INTIMAÇÃO PESSOAL DO DEFENSOR DATIVO. NULIDADE. PRECLUSÃO. PRECEDENTES. ORDEM DENEGADA.
1. A intimação pessoal do defensor público ou dativo está assegurada na legislação pátria (arts. 5.º, § 5.º, da Lei 1.060/50, 370, § 4º, do CPP, 44, I, e 128, inciso I, da Lei Complementar n.º 80/94) e sua falta é causa de nulidade absoluta por cerceamento de defesa.
2. Mas não deve ser reconhecida referida nulidade quando arguida depois de decorridos mais de quatorze anos, pois já preclusa a matéria. Precedentes.
3. Ordem denegada
(HC 225.727/SP, Rel. Ministra ALDERITA RAMOS DE OLIVEIRA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/PE), SEXTA TURMA, julgado em 02/10/2012, DJe 11/10/2012)”.
Na decisão do STJ, fala-se em “preclusão” da arguição de “nulidade absoluta”, o que, segundo uma teoria clássica, poderia ser considerada uma contradição em termos; afinal, a alegação de vício insanável não preclui; pode se dar, inclusive, a qualquer tempo. Entretanto, a força normativa do princípio da boa-fé objetiva obsta qualquer tipo de alegação, em confronto, no caso concreto, com outros importantes princípios, como do contraditório e da ampla defesa.
Conclusivamente, pode-se afirmar que o vício, ainda que grave, não acarreta sempre e necessariamente a decretação da invalidade do ato jurídico processual, podendo a sanção de invalidade ser afastada quando presente a violação à boa-fé objetiva.
Sendo o princípio da boa-fé processual afeto à Teoria do Processo, deve o entendimento do STF também valer para o processo civil, para o processo trabalhista etc. Deve-se ressalvar que o regime geral das nulidades processuais não se altera completamente: na verdade, sofre o influxo da nova teoria da interpretação no que toca à ponderação de princípios postos em confronto.
TICIANO ALVES E SILVA.
(http://dialogosconstitucionais.tumblr.com/post/40856614790/nulidade-absoluta-e-boa-f-objetiva-processual).