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domingo, 30 de setembro de 2012

Liberdade de imprensa e direitos da personalidade (Elaine Tavares)

[ 04.09.12 ] - Liberdade de imprensa e direitos da personalidade
Liberdade de imprensa e direitos da personalidade
Por Elaine Tavares - jornalista


Conferência proferida no Seminário: Liberdade de Expressão e Direitos da Personalidade, promovido pelo Sindicato dos Jornalistas de Mato Grosso, Ministério Público e OAB. Cuiabá - 31 de agosto de 2012.

04.09.2012  - Esse seminário é uma boa provocação do sindicato. Afinal, não é pouca coisa discutir liberdade e direitos da pessoa.  Então vejamos. Liberdade é um conceito moderno, do mundo liberal. No mundo antigo, seja ele autóctone, oriental, árabe ou europeu, a ideia de liberdade estava mais ligada à situação do escravo de fato. Aquele que era capturado nas guerras de conquista e que sentia desejos de liberdade, de sair dos grilhões. De uma forma geral, nas comunidades antigas não se pensava em termos de liberdade individual. O que estava em jogo sempre era a comunidade, o clã. Basta que a gente se lembre de como eram – e ainda são em algumas comunidades comunitárias – arranjados os casamentos. Não estava em questão a vontade individual, o amor romântico, mas a sobrevivência do clã, da família, do reino.  Viver era ser comunidade.

É o mundo grego, com o debate sobre a razão, que inaugura outro olhar sobre esse conceito, individualizando-o. Aristóteles fala sobre a liberdade declarando que o homem livre é aquele que é capaz de realizar suas escolhas com livre arbítrio e desde a razão. Isso significa que ele descola o ser (a pessoa individual) da comunidade. Ou seja, o homem, escolhendo e guiado pela razão pode ascender à liberdade de ser e fazer o que quiser.  Ora, mesmo na Grécia de Aristóteles isso já era uma coisa bem difícil de ser real. Por quê? Porque na Grécia só podiam exercer o tal do livre arbítrio aqueles que tinham esse direito na polis, quais sejam, os homens, os proprietários.  Mulheres e crianças estavam fora dessa ideia de liberdade.

Não foi sem razão que o grande filósofo da razão e da moral, Immanuel Kant, definiu a liberdade na relação com a propriedade.  Para ele, os homens livres são os que têm propriedade e  são esses livres os que fazem as leis. Aí já foi tudo para as cucuias e abre o corte de classe nesse debate. Liberdade então seria o direito de fazer tudo o que a lei permite. Mas se a lei é feita pelos proprietários, a liberdade seria coisa de poucos, não é mesmo? Ou de uma única classe, a dos proprietários. De novo estamos aí com a ideia de liberdade apenas para alguns.

Marx, ainda no marco da modernidade europeia, vai fazer a crítica a esse modo de ver a liberdade. Ele mostra que a propriedade não é um bem natural nem um pressuposto do Estado, ela é fruto da violência e do domínio de uns sobre os outros. Mostra ainda que a propriedade privada faz com que um único dono desfrute de um bem, arbitrariamente, segundo um interesse pessoal. Essa seria uma visão egoísta do mundo e nesse pilar se fundamentaria a sociedade burguesa. Assim, diz Marx, a liberdade de expressão e de posse representa o direito de advogar para si aquilo que é produzido coletivamente. O mundo moderno, dos proprietários, defende e cristaliza o individual sobre o coletivo. Daí que liberdade de imprensa, para Marx, representava unicamente a liberdade de empresa, ou seja, do proprietário.

Vejam aí que chegamos a um ponto interessante. A concepção de liberdade que impera no mundo ainda é a ideia liberal, de Kant: só são livres os proprietários, ou para usar uma palavra mais contemporânea, só são livres os consumidores. Esses, os que podem consumir, são os que podem fazer escolhas segundo a razão. Que liberdade tem um pobre no mundo capitalista? Que opções e escolhas ele tem se não tem dinheiro para consumir? Por isso, a crítica de Marx segue atualíssima. Então, quando falamos então em liberdade de expressão, no mundo moderno, seguimos falando da liberdade de muito poucos. No geral, no campo das empresas de comunicação, os que podem exercer a liberdade de expressão são os donos dos meios, ou os amigos dos donos, ou os anunciantes que financiam os meios. Esses podem expressar livremente sua opinião, suas ideias e até seus preconceitos. Tudo é válido, inclusive mentir, omitir, inventar.

Aos demais – excluídos da propriedade e também da liberdade – resta o silêncio. Quando aparecem nos meios, são as vítimas de enchentes, os coitadinhos, ou então, os bandidos. É raro ver os pobres, feios, sujos e malvados em situação de sujeito, de pessoa livre, capaz de atuar dentro do seu livre arbítrio, fazendo aquilo que quer, dizendo o que pensa. O pobre, ao gritar e clamar por justiça, ao questionar a sua situação de prisioneiro de um sistema, está quase sempre se contrapondo à lei criada pelos proprietários. E não tem, verdadeiramente, nos espaços da mídia burguesa, como expressar a sua liberdade. É certo que aqui no Brasil estamos muito atrasados nessa discussão enquanto em outros países da América Latina, a população conseguiu avançar. Na Venezuela, de desde 2004 está em vigor a Lei de Responsabilidade Social em Rádio e Televisão, uma das mais interessantes do continente, que garante ao povo organizado o direito de produzir e controlar o conteúdo. Um avanço importante na soberania comunicacional do país. Também na Bolívia as comunidades indígenas tem logrado constituir uma rede de rádios comunitárias que já saíram do campo do “alternativo” e é uma das  forças mais importante do país. O Equador produziu lei de comunicação, a Argentina também. Nós, aqui, ainda patinamos, na busca por um pouquinho mais de democracia, tateando na busca de liberdade de expressão dentro dos marcos de um Estado que não dá sinais de mudança.

Assim, é preciso que a gente tenha bem claro que essa coisa de liberdade está intimamente ligada com a luta de classes. E, se aceitamos que o que impera é mesmo o conceito de Kant, a liberdade, pelo menos por aqui, ainda só é possível aos proprietários - é o que constatamos ao analisar a realidade - então sobra aí uma outra classe, a dos não proprietários, que precisa lutar muito para fazer valer os seus direitos.

A internet

Então vamos introduzir aqui um elemento não previsto por Marx, que é a Internet. A rede que nasce com objetivos militares é uma cópia virtual da técnica de guerrilha tão bem ensinada por Che. Pequenos focos, sempre em movimento para proteção do centro. De repente, a coisa foi crescendo e se popularizando. Hoje, qualquer um – que tenha a liberdade de ter dinheiro para pagar – pode estar conectado. Qualquer pessoa - pagando - pode ter um blog, pode postar informações no facebook, no twitter. Isso é uma revolução no conceito de liberdade de expressão e no fazer jornalístico. Na internet a pessoa pode inclusive postar informações anonimamente, criando contas falsas. Há uma exaustiva divulgação de fatos e ideias de forma bastante livre na internet. Não é mesmo?

Bom, é claro que isso também é uma ilusão. A primeira é essa da liberdade. Só pode quem paga. Assim, empresas há que ganham bilhões de dólares com a loucura da "liberdade de informação" na net, basta vermos a história do guri do facebook que inclusive vende informações privadas, enquanto existem criaturas que nem deram seu primeiro telefonema. A outra é que os servidores que gerenciam e controlam a informação permitem que a pessoa divulgue o quer, até por ali. Se tocar em algum interesse que seja caro ao sistema o servidor tira do ar o blog, suspende o facebook. Isso acontece todos os dias. O sistema pode tudo. Não há liberdade na rede. É tudo ilusão.

Lá em Florianópolis tínhamos um companheiro, agitador cultural, jornalista popular, o Mosquito, que mantinha um blog, o Tijoladas, onde escrachava a vida dos políticos, denunciava as maracutaias dos governantes, apresentava documentos. Ele vivia enredado com a justiça. O blog dele foi tirado do ar várias vezes. A coisa foi tão violenta que ele se matou, acossado pelas ameaças e pela provável prisão, decretada porque ele dizia verdade de forma dura e crua. Então, isso é só uma pequena mostra de como a liberdade de expressão só é possível enquanto não toca em pontos nevrálgicos do sistema. Se for para denunciar "massacres" do governo sírio, todas as liberdades são dadas, mas Cuba seque impedida de ter internet banda larga, por quê? Porque não querem que seja mostrada a verdade sobre o sistema cubano. Lá, apenas os agentes pagos pela inteligência estadunidense têm acesso à internet rápida. Então, onde está a liberdade? Não voltamos outra vez à luta de classe e à batalha por formas diferentes de organizar a vida?

A enxurrada de informação a que estamos submetidos todos os dias está repleta de coisas que não são do interesse do sistema, por isso essa sensação de liberdade. Mas, por outro lado, essa mesma sensação de que agora, com a rede, podemos fazer tudo o que quisermos, acaba mexendo com a vida cotidiana das pessoas no seu mundo real. Daí que chegamos ao ponto: se podemos ser livres para informar o que queremos, não teríamos que zelar pelo direito do outro/ Qual é o limite ético da informação que produzimos/ E aqui não estou falando da pessoa comum, no seu direito individual de ferir quem quer que seja – a considerar o conceito kantiano de que a pessoa proprietária é livre para fazer o que quiser. Estou falando do jornalista, que tem por obrigação ética narrar a vida nas suas mais variadas facetas. Como enfrentar esse dilema? O que, nós jornalistas, podemos fazer nessa selva de informação?

Tem um filósofo de quem eu gosto muito a despeito das muitas interpretações que se fazem sobre sua obra: é Friedrich Nietzsche. Ele foi o grande crítico da moral kantiana, moderna. Ele previu que chegaria o dia do “último homem” que seria bem esse que a gente vê nos dias atuais. Egoísta, individualista, incapaz de se comover com a vida mesma. Mas, ao mesmo tempo ele anunciou o “super-homem”, que ao contrário do que seus opositores costumam dizer não é o puro de raça, o ariano, o totalitário. Não! A ideia de Nietzsche era de que o “super-homem” seria aquele capaz de superar o último homem, uma criatura que carregasse dentro dela a pureza da criança. Ele dizia: "o super-homem é aquele que vivendo num tempo em que é possível fazer tudo o que se quer, só faz o que é nobre". Pois não é uma coisa incrível, isso? Não é uma porrada certeira na cabeça da frivolidade do mundo atual? Tu podes tudo, é certo, mas, podendo tudo, só fazes aquilo que é nobre. Fantástico!

Em outras palavras, o “super-homem” nietzschiano cumpriria a ética de libertação proposta por Henrique Dussel. Num tempo em que praticamente todos os valores se particularizam, a única ética  universal possível é a preservação da vida. Mas não qualquer vida, a vida da comunidade das vítimas, dos excluídos da liberdade de expressão, de ser, de morar, de viver.  Bom, e nesse campo onde então se colocam os jornalistas?

Deveriam se colocar no patamar de defensores da vida que se expressa na comunidade das vítimas. Daí que sua função primeira seria a de narrar esse mundo. Mas, narrar com verdade. O jornalista tem o compromisso ético de não mentir nem inventar fatos. O jornalista tem de checar e checar mil vezes uma informação porque a vida do outro é como um cristal, uma vez partido, não cola mais.

Outro dia circulou na internet uma foto de uma jovem com uma criança no colo e apontando uma arma para ela. Foram horríveis os comentários. As pessoas realizaram um linchamento moral. Logo depois apareceu a foto real, ela segurava um pássaro na mão, fora uma montagem. As pessoas comuns podem até disseminar essas coisas, porque não tem um compromisso ético com a informação. Mas nós, jornalistas, não. Tudo tem de ser checado. É muito perigoso esse instrumento de "liberdade" que é a internet, porque, no fundo, se analisarmos bem, está completamente a serviço das grandes empresas, do sistema capitalista como um todo. A quem interessa que a população permaneça com um véu colocado sobre seus olhos? A quem interessa que a rede dissemine a desinformação, o preconceito, o modo de vida capitalista de egoísmo, de consumismo, de vaidades?

É certo que não é fácil ser jornalista nesse mundo. No mais das vezes é mais fácil servir ao poder. Ganhamos dinheiro, não nos incomodamos tanto, podemos fazer pequenas sujeiras, praticar pequenas corrupções e seguimos salvos. Mas essa não é a função de um ser crítico que quer construir um mundo melhor.

A história do jornalismo nos conta que ele nasceu como prática diária, na França, e que é filho dileto do capitalismo. Isso é verdade. Mas o jornalismo como crítica é tão antigo quanto o homem. O jornalismo como expressão de um mundo pode ser remontado à idade da pedra, quando os humanos desenhavam nas cavernas nos contando sobre a vida. Adelmo Genro, no seu brilhante livro sobre o segredo da pirâmide, diz: a notícia é aquela capaz de partir da singularidade de um fato e descrevê-lo de tal forma que o leitor possa compreender a universalidade onde ele está inserido. Parece uma coisa difícil e complexa, mas não é. O que Adelmo nos convida a fazer é praticar um jornalismo crítico, impressionista, que contextualize os fatos cotidianos e leve o leitor a compreender a realidade como um todo e não como um fragmento. O jornalismo de hoje é isso, pequenos drops descolados e desconectados, não estabelece nexos com o todo.  E o que é pior, agora, com a internet ainda se permite inventar, mentir e enganar com muito mais rapidez.

Nós podemos mudar isso. O jornalismo não é um ente vivo, ele é o que fizermos dele. E nós podemos fazer jornalismo de qualidade, que mude o mundo, que balance as pessoas, que emocione, que faça o mundo se mover, que desperte o senso crítico, a capacidade de compreender a realidade.

Há um livro muito lindo do Saramago chamado “A Caverna”, no qual ele conta de um mundo em que tudo perdeu a sua beleza, que a vida é de plástico, que as pessoas moram em bolhas tipo shoppings. Mas há um pequeno grupo que ainda faz coisas artesanais, que vive no mundo fora da bolha. Eles acabam sendo levados para viver dentro da bolha. Se rendem... E lá ficam por algum tempo até que percebem que as coisas podem ser diferentes... Então eles saem dali e seguem na direção do talvez, do impensado, do improvável, do ainda-não... É isso que temos de fazer. Romper com esse mundo de plástico. Essa é a verdadeira liberdade. Ser capaz de dizer não ao que está aí e caminhar na direção do grande meio-dia. Como fazemos isso? Praticando o jornalismo de verdade, esse, do Adelmo, que não serve a nenhum sistema, mas à compreensão do mundo e à libertação.


 Do Portal Iela: (http://www.iela.ufsc.br/?page=noticias_visualizacao&id=2070). Acesso em: 30/set/2012.

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