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domingo, 1 de janeiro de 2012

O acontecimento Foucault (Beatriz Marocco)


31/12/2011 e 01/01/2012 | N° 9404

CULTURA

O acontecimento Foucault

Meio século depois da publicação de História da Loucura, Michel Foucault continua a virar pelo avesso o que parece natural na experiência cotidiana

Certa vez, Michel Foucault manifestou o desejo de que o que deixou dito e escrito funcionasse como uma caixa de ferramentas úteis para calibrar nosso olhar sobre as coisas e para conhecermos a nós mesmos como seres históricos. Quem era ele para dizer isso? “Sou jornalista”, afirmou, fazendo um silêncio enigmático em torno desse enunciado que nos tem permitido explorar suas teorias e ações voltando-nos a algo que não permanece oculto, mas não é transparente, e que constitui o “natural” de nossa experiência cotidiana. Neste duplo sentido, metodológico e de identificação com o ativista intelectual que aproximou jornalismo, filosofia e história do que é menos visível na sociedade, desde a História da Loucura, milhares de leitores foram e continuam sendo alfinetados e afetados pelos usos que a obra foucaultiana potencializa. Por quê?

Ao se debruçar sobre a própria obra, Foucault disse que, para se afastar de uma história das mentalidades, ou de uma história das representações, quis fazer uma “história do pensamento”, em que se dedicou a decifrar os lugares de experiência que foram importantes para a definição da nossa cultura. A experiência da loucura, a experiência da doença, a experiência da criminalidade e da sexualidade foram alguns desses lugares. Em cada um deles se articulavam três âmbitos que cabia interrogar: das formas de um saber historicamente constituído, das matrizes normativas de comportamento dos indivíduos e dos modos de existência dos sujeitos. Aparecem aí três eixos – o saber, o poder e a constituição do sujeito – privilegiados por Foucault em seus principais trabalhos.

Nessa empreitada, uma noção fundamentou as suas intervenções desde História da Loucura: a noção de “problematização” deu consistência ao objetivo de descobrir o que faz com que uma coisa entre no jogo do verdadeiro e do falso e se constitua em objeto para o pensamento. No caso da loucura, Foucault investigou como e por que, em dado momento histórico, o louco foi inscrito no quadro da doença mental, da prática psiquiátrica e da instituição asilar, como deixou de falar por si, da experiência de si como louco e se tornou um objeto para os outros em um contexto social, político e epistemológico. A conduta sexual, por outro lado, foi problematizada a partir de uma inversão na maneira tradicional de relacionar a questão das relações da sexualidade com a interdição, considerando-a como uma prática moral que concerne ao indivíduo que deve ser senhor de si e senhor dos outros. Em ambos os estudos – da loucura na Idade Média e da sexualidade na Grécia antiga –, Foucault explorou o passado a partir de uma questão nevrálgica da atualidade. Em História da Loucura, mais concretamente, ele indagou discursos ligados às práticas institucionais, textos pouco familiares, e comprovou a insuficiência das teorias que pretendem elaborar um saber objetivo.

Segundo Miguel Morey (2004), “o olhar de Foucault nos ajuda a perceber o modo como os saberes médicos e os poderes institucionais mais diversos (o hospital, o manicômio, mas também a escola, a fábrica ou o quartel) entrecruzam a malha de seus dispositivos para ir exigindo do homem um corpo disciplinado e dócil, produzido pouco a pouco”.

Foucault defendeu a tese intitulada Folie et Déraison, Histoire de la Folie à l’Age Classique, em 20 de maio de 1961. A reação ao livro, publicado no mesmo ano, foi, ao mesmo tempo, virulenta e ambivalente. Foucault fantasiou uma história da loucura que não constava dos arquivos da história da psiquiatria, diziam os historiadores, que reduziram o livro a uma série de bobagens: erros de datas, erros de interpretação, erros de seleção de documentos, desconhecimento de tal fato ou valorização imaginária de outro. A impressão deles era de que essa loucura, que não tinham visto nos arquivos, e que Foucault parecia ter exumado num passe de mágica, decorria de uma construção literária brilhante, mas irresponsável. Os adeptos da psiquiatria dinâmica de Philippe Pinel se referiam a Foucault como “psiquiatricida”. Por causa disso ganhou força a ideia de que o francês não era nem médico nem psiquiatra e que jamais tivera de enfrentar loucos de camisa de força. Em 1992, Jacques Derrida ainda reconhecia a dificuldade de identificar e medir o efeito que esse acontecimento teve para ele: “Foucault foi, há 30 anos, um acontecimento que nem mesmo tento identificar, e muito menos medir, no fundo de mim, a repercussão, tanto ela foi intensa e múltipla em suas figuras”.

Cinquenta anos depois, no rastro de História da Loucura, título reduzido que o livro ganhou na edição de 1972 (Gallimard), pode-se seguir refletindo sobre os sentidos da exclusão que vêm sendo depositados sobre as figuras insistentes e temidas da lepra, das doenças venéreas, da loucura. Nesse sentido, Foucault esquadrinhou, em trabalhos posteriores, o funcionamento de uma rede institucional, que se formou entre o final do século 18 e o século 19, voltada não somente a governar os indivíduos, por meio de procedimentos disciplinares, mas aos problemas das populações quanto à gestão da saúde, higiene, alimentação, sexualidade, natalidade, e, simultaneamente, à criação da imagem do “outro”, inquietante e dificilmente controlável.

As estratégias de objetivação e classificação dessas novas figuras, que aparecem com mais nitidez nos discursos com baixo grau de epistemologização, como o discurso jornalístico, têm sido ferramentas úteis para que se leve adiante uma crítica da prática jornalística. Além de transportarem signos recentes da medicalização da sociedade, como os aidéticos e drogadictos, as mídias produzem e reproduzem diariamente novas figuras que ameaçam nosso desejo de segurança, de propriedade, de poder ter e de consumir. No espaço das mídias, como dispositivos de saber/poder que objetivam indivíduos e acontecimentos, pode-se ensaiar uma análise dos espantalhos que assombram e configuram o pensamento de nossa época.

Retomando o diálogo com Deleuze publicado na revista L’Arc, em 1972, com o qual iniciamos este texto, pode-se concluir que, para descobrir o que o biopoder é capaz de fazer conosco, Foucault sugeriu que usássemos as suas reflexões, levando em conta, primeiramente, a sua posição sobre a questão “O que é uma teoria?” :

Foucalt – Uma teoria é uma prática. Local e regional, não totalizadora – é um sistema regional de luta...

Deleuze – Exatamente como uma caixa de ferramentas. É preciso que sirva, funcione” (Um Diálogo sobre o Poder, 1972).

* Jornalista e professora
BEATRIZ MAROCCO *






Do Portal Clicrbs/DC: (http://www.clicrbs.com.br/diariocatarinense/jsp/default2.jsp?uf=2&local=18&source=a3616756.xml&template=3898.dwt&edition=18690&section=2213). Acesso em: 01/jan/2012.

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