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terça-feira, 2 de agosto de 2011

"João Goulart teve a coragem de não resistir" (do Biógrafo Jorge Ferreira, entrevista à Moisés Mendes do Diário Catarinense)


30 de julho de 2011 | N° 9246AlertaVoltar para a edição de hoje

ENTREVISTA

“João Goulart teve a coragem de não resistir”

Entrevista: Jorge Ferreira, historiador Covarde ou visionário? Esquerdista ou conservador? Trinta e cinco anos depois de sua morte no exílio, Jango continua a confundir a história. Em novo livro, o biógrafo Jorge Ferreira arrisca uma explicação

João Belchior Marques Goulart morreu no exílio, em Mercedes, na província de Corrientes, na Argentina, no dia 6 de dezembro de 1976. Tinha 57 anos. Sepultado em São Borja, poderia ser preservado como um dos mitos do trabalhismo e virar lenda ao lado de Getúlio Vargas e Leonel Brizola. Não foi o que aconteceu. O ex-presidente Jango está enterrado no limbo da história, na vala comum dos desimportantes. O historiador carioca Jorge Ferreira, professor da Universidade Federal Fluminense, dedicou-se ao resgate de sua memória por 10 anos. Escreveu João Goulart – Uma Biografia para que deixassem de ver o gaúcho como uma caricatura simplificadora e grotesca, sem meios-tons e sem nenhuma virtude.

Ferreira foi atrás das ambiguidades de Jango, o fazendeiro que se aliou a trabalhadores rurais, pequenos agricultores e operários para fazer reformas econômicas e sociais – entre as quais a temida reforma agrária –, provocou a ira dos militares e dos conservadores civis e foi derrubado em 1964. O que sobrou de Jango foi uma imagem resumida em adjetivos: fraco, titubeante, despreparado, populista, ingênuo e – por último – covarde, por não ter resistido ao golpe.

O carioca reconstitui cada pedaço da história de Jango, desde o nascimento, em 1o de março de 1919. Descobre que até um ano de idade Janguito foi vestido com roupas de menina pela mãe, dona Tinoca. O único filho anterior havia morrido, e a família era dominada pelas mulheres – o fazendeiro Vicente e Tinoca tinham três filhas. Quando Janguito nasceu, o casal ouviu alguém dizer que deveria escondê-lo em roupas femininas, para que assim o menino enganasse a morte.

Aos 17 anos, Jango ganhou um pedaço de terra do pai e virou estancieiro. Aos 24, com a morte de Vicente, assumiu a chefia da família. Ficou rico. Conheceu Getúlio Vargas. Elegeu-se deputado estadual e federal. Aos 34, era ministro do Trabalho de Vargas. Foi vice-presidente duas vezes. Assumiu a Presidência em 1961, depois da renúncia de Jânio Quadros, e caiu três anos depois.

O livro avança e investiga a história do personagem para revelar quem foi esse latifundiário de família tradicional que, em vez de frequentar o Clube Elite, dos fazendeiros de São Borja, preferia o Clube São-Borjense, dos pobres e negros? Por que se aliou às esquerdas? Por que foi derrubado? Como lidava com os conflitos provocados pelo cunhado Leonel Brizola? E por que optou pela fuga para o Uruguai, quando muitos pensavam que poderia ter resistido ao golpe?

Nesta entrevista, o biógrado fala das várias faces de Jango e de como a imagem do ex-presidente foi demolida pela direita, pelas esquerdas e por parte da produção intelectual saída das universidades:

Por que a memória de Jango, atacada pela direita, também não interessa às esquerdas?
Jorge Ferreira – Depois do golpe militar, uma série de interesses políticos, tanto de setores da esquerda, quanto da direita e dos próprios liberais – e mesmo entre professores universitários –, acaba convergindo. Os golpistas civis e militares de 1964 tinham, evidentemente, que justificar o golpe. Assim, desqualificam o regime político que derrubaram, que era o regime da Constituição de 1946. São imagens negativas que vinham se formando desde a década de 1950, sobretudo com os udenistas, de que a democracia não era completa, de que o povo era manipulado e não sabia votar porque não votava neles. Há os ataques udenistas de Carlos Lacerda (governador do então Estado da Guanabara, hoje Rio de Janeiro) contra João Goulart, de que era um demagogo, um manipulador de operários, que queria implantar uma república sindicalista. Essas imagens negativas formuladas nos anos 1950 foram retomadas pelos golpistas de 1964, que, no poder, trataram de ampliá-la. As lideranças, sobretudo Juscelino Kubitscheck (presidente de 1956 a 1961) e João Goulart, foram muito desqualificadas. Eles foram acusados de corruptos, abriram-se dezenas de processos contra Juscelino e Goulart e nada foi provado. Goulart era atacado particularmente por ser o herdeiro político de Getúlio Vargas. Os militares não perdoaram Goulart por ter se aproximado dos comunistas e, ao mesmo tempo, de setores das Forças Armadas.

Jango era desqualificado também por ser, como se dizia, um homem de poucas luzes?
Ferreira – Goulart entrou na política pelas mãos de um professor importante chamado Getúlio Vargas. Foi deputado estadual, federal, presidente do PTB, foi ministro do Trabalho, duas vezes vice-presidente da República. E, pela Constituição de 1946, o vice era também presidente do Senado. Goulart dominava a fundo a máquina política brasileira, tanto no Executivo quanto no Legislativo. Tinha um diploma de bacharel em Direito pela UFRGS completamente nulo, porque nunca advogou. Goulart, em termos de preparo intelectual, era como os políticos da época. Não era diferente. Ele não tinha a retórica bacharelesca da UDN (o partido de Larcerda), de fazer citações em latim. Mas era um excelente orador.

Mas por que ele era considerado despreparado?
Ferreira– O que irritava as elites políticas brasileiras é que Goulart era um rico empresário rural. Este homem chega ao topo da política brasileira e se aproxima do movimento sindical, conversa com as pessoas, recebe populares em seu gabinete. Muitas vezes, o preconceito de classe misturava-se ao preconceito racial, porque muitos sindicalistas eram negros. Para as elites, isso era um horror. Como um rico empresário rural, em vez de fazer o jogo das elites, faz o contrário? Isso irrita profundamente as elites. Vem daí a ideia do despreparado. Seria preparado se lidasse com as elites. Quem criou a imagem de Goulart como despreparado e ignorante, que não estudou, foi o Lacerda. Foi quem mais fabricou as imagens negativas de Goulart.

As esquerdas passam a pensar a mesma coisa depois do golpe?
Ferreira – Num certo momento, a produção marxista faz uma ligação muito direta entre origem de classe e ideologia de classe. Se o sujeito nasce operário, ele vai ter uma ideologia proletária. Se nasce burguês, terá ideologia burguesa. Hoje isso está superado. Era complicado para muitos intelectuais e setores de esquerda acreditarem que um latifundiário poderia ter a intenção de fazer a reforma agrária. Essa é uma ambiguidade que eu exploro no livro. No livro, eu também informo que não vou procurar contradições, vou procurar as ambiguidades próprias do ser humano. É possível, sim, um latifundiário querer fazer a reforma agrária. Ele defendeu a desapropriação de terras, sem indenização prévia em dinheiro. As primeiras fazendas a serem desapropriadas eram duas fazendas dele.

O senhor diz no livro que os intelectuais aderem à difamação de Jango.
Ferreira – A geração que viveu 1964 se decepcionou muito com o golpe, porque havia um reformismo em curso e tudo ruiu muito rapidamente. Houve na universidade, entre os intelectuais, uma espécie de desforra, uma procura pelos culpados pela derrota em 1964. Muitos livros foram publicados culpando o movimento operário, classificando o movimento sindical como o velho sindicalismo e como pelego. Criou-se o conceito de populismo. O período que vem desde 1930 até 1964 é definido como o período do populismo. É uma palavra desqualificadora. A democracia foi populista, a República foi populista.

Qual é a origem da propagação dessa ideia de populismo?
Ferreira – Começa com os trabalhos do sociólogo Francisco Weffort e também com Octavio Ianni (cientista político) na universidade. Isso depois vai para a imprensa. Chega a um ponto em que, pelo menos até o início dos anos 1970, fica difícil encontrar um estudo acadêmico que não qualifique aquele regime como populista. O livro de Weffort, de 1978, chama-se O Populismo na Política Brasileira. Mas a expressão “populismo” começa a ser trabalhada na universidade na segunda metade dos anos 1960. Na década de 1970, a expressão alcança seu auge. Goulart, Brizola, Vargas, Lacerda, Juscelino – todos são qualificados como populistas. O conceito teórico é cunhado na universidade e depois cai na imprensa, mais como jargão.

E quem é, afinal, o populista?
Ferreira – Populista é aquele de quem você não gosta. O populista é sempre o candidato do outro, o partido do outro. E você pode dizer tanto do Barack Obama quanto do Hugo Chávez que são populistas, mesmo que sejam figuras completamente antagônicas. Octavio Ianni tem um livro de 1968, chamado O Colapso do Populismo no Brasil. Ficou a ideia de que em 1964 não houve um golpe militar, mas o colapso do populismo. E que Goulart foi o último presidente populista. Populismo é sinônimo de demagogia, de mentira, de desfaçatez, daquele que engana o povo. Assim, Goulart cai no limbo de história.

Brizola, ao pregar a radicalização, contribui de alguma forma para a reação militar e a queda de Jango?
Ferreira – Há muitos anos, quando comecei a estudar o assunto, ouvi de muitas pessoas que foi Brizola (então deputado federal pela Guanabara, depois de ter governador o Rio Grande do Sul) quem levou Jango a se perder. O indivíduo na história é importante, não pode ser descartado. Mas é preciso evitar a personalização da história, reduzir grandes processos a um indivíduo. Creio que Brizola teve papel extremamente positivo na campanha da Legalidade em 1961. Foi de uma coragem extraordinária, foi o primeiro líder civil no Brasil que enfrentou um golpe militar, arregimentou a sociedade e derrotou os militares. Brizola sai com prestígio imenso do governo do Rio Grande do Sul e começa a concorrer com João Goulart como líder das reformas. Brizola, durante o governo Goulart, radicaliza as esquerdas.

O que o senhor encontrou de mais interessante da vida de Jango no exílio?
Ferreira – Ele sofreu muito no exílio. Passou a sofrer um processo depressivo. Os depoimentos são unânimes. Todas as pessoas que estiveram com ele dizem que ele mostrava amargura no rosto. Ele não se abria, era um homem fechado. Havia tristeza em seu rosto. Ele tomava remédios para a hipertensão, e um desses remédios bloqueava a produção de serotonina, o que levava à depressão. Era um homem muito sofrido por não conseguir voltar ao Brasil.

Jango, como todos os exilados brasileiros, não escreveu nada no exílio, não deixou anotações, nem diários.
Ferreira – Isso chama a atenção. Eles não escreveram. Existem muitas cartas que Jango escreveu e cartas que ele recebeu. Mas nada de reflexão política.

Maria Thereza também é lembrada com uma mulher muito bonita, mas desimportante como primeira-dama. Como o senhor trata Maria Thereza no livro?
Ferreira – Ela foi importante na vida dele, Jango sempre foi apaixonado por ela. Teve uma atuação na Legião Brasileira de Assistência (LBA) que é completamente desconhecida. Ela fez um trabalho importante ao implantar a LBA em Brasília. A família é quem aguenta a barra de figuras políticas que sofrem perseguições. Ela se exilou e foi impedida de ver a morte da mãe. Para ver o pai doente, entrou no Brasil e foi escoltada do aeroporto até o hospital, com homens fortemente armados. Quando teve de deixar o Brasil em 1964, deixou tudo para trás, fotografias, cartas, objetos pessoais, roupas. É algo traumático.

Por que Jango não reagiu ao golpe?
Ferreira – Muitos dos personagens daquela época acreditavam que a resistência seria possível. Se ele desse a voz de resistência, o país se levantaria. Eu acredito que sim. Muitos setores das Forças Armadas resistiriam. Havia uma forte base janguista. Mas haveria luta, uma guerra civil. O governo americano poderia intervir com armas e apoio financeiro. Haveria muitos mortos. Goulart sabia disso. Nós sabemos que aquilo resultou numa ditadura de 21 anos. Os personagens da época não imaginavam que a ditadura se estenderia. Os líderes civis do golpe eram candidatos à Presidência da República em 1965. Queriam as Forças Armadas para tirar os concorrentes – Jango, Brizola e Juscelino – de cena. Os chefes militares, Castello Branco e Amaury Kruel (generais), também não pensavam em governo militar. Pensavam em fazer uma limpeza, tirando de cena os trabalhistas e os comunistas e entregando o poder aos civis, no caso, a UDN. Goulart raciocinava assim. Foi deposto, iria para a sua cidade e depois tudo voltaria ao normal. Tanto que ele não vai direto para o Uruguai, vai para São Borja. Ele achava que ficaria lá. Se tudo voltaria ao normal, por que uma guerra civil? Depois é que o avisam: você vai morrer. E ele embarca então, no dia 4 de abril, para o Uruguai.

Jango fez o que deveria ter sido feito?
Ferreira – Eu não compartilho dessa ideia de que ele foi covarde. É difícil você ter nas costas a responsabilidade por milhares de mortos. Numa guerra civil, você sabe como entra, mas não sabe como sai. Eu o valorizo por aquilo que ele não fez. Goulart teve a coragem de não resistir.

MOISÉS MENDES
 ... Disponível no Diário Catarinense de 30/jul/2011: (http://www.clicrbs.com.br/diariocatarinense/jsp/default2.jsp?uf=2&local=18&source=a3423154.xml&template=3898.dwt&edition=17637&section=1323). Acesso em: 02/ag/2011.

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