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AberturaMundoJuridico 07/jan/2017...
A globalização morreu (Por Alvaro Garcia Linera)
Hoje, quando ainda retumbam os últimos fogos da
longa festa “do fim da história”, a triunfante globalização neoliberal
faleceu deixando o mundo sem final, nem horizonte vitorioso
Do OPERA MUNDI
A renúncia da Grã-Bretanha em fazer parte da União Europeia — o
projeto mais importante de unificação dos últimos cem anos — e a vitória
eleitoral de Trump — que levantou as bandeiras de uma volta ao
protecionismo econômico, anunciou a renúncia a tratados de livre
comércio e prometeu a construção de mesopotâmicas muralhas fronteiriças —
aniquilaram a maior e mais bem sucedida ilusão liberal de nossos
tempos. E que tudo isso venha dos dois países que há 35 anos, cobertos
em suas couraças de guerra, anunciaram a chegada do livre comércio e a
globalização como a inevitável redenção da humanidade, fala de um mundo
que se inverteu ou, pior ainda, que esgotou as ilusões que o mantiveram
acordado durante um século.

García Linera é sociólogo e vice-presidente do Estado Plurinacional da Bolívia
Acontece que a globalização como meta-relato, isto é, como horizonte
político ideológico capaz de conduzir as esperanças coletivas para um
único destino que permitisse realizar todas as expectativas possíveis de
bem-estar, foi estatelada em mil pedaços. E hoje não existe em seu
lugar nada mundial que articule essas expectativas comuns; o que se tem é
um recolhimento atemorizado ao interior das fronteiras e o retorno a
uma espécie de tribalismo político, alimentado pela ira xenofóbica,
diante de um mundo que já não é o mundo de ninguém.
A medida geopolítica do capitalismo
Quem iniciou o estudo da dimensão geográfica do capitalismo foi Marx.
Seu debate com o economista Friedrich List sobre o “capitalismo
nacional” em 1847 e suas reflexões sobre o impacto do descobrimento das
minas de ouro da Califórnia no comércio transpacífico com a Ásia, o
posicionam como o primeiro e o mais solícito pesquisador dos processos
de globalização do sistema capitalista. De fato, sua participação não
consiste na compreensão do caráter globalizado do comércio que começa
com a invasão europeia na América, mas na natureza planetariamente
expansiva da própria produção capitalista.
As categorias de inclusão formal e inclusão real do processo de
trabalho ao capital com as que Marx mostra o auto movimento infinito do
modo de produção capitalista supõem a crescente inclusão da força de
trabalho, do intelecto social e da terra à lógica da acumulação
empresarial, ou seja, a subordinação das condições de existência de todo
o planeta à valorização do capital. Decorre disso que, nos primeiros
350 anos de sua existência, a medida geopolítica do capitalismo tenha
avançado das cidades-Estado à dimensão continental e tenha passado, nos
últimos 150 anos, à medida geopolítica planetária.
A globalização econômica (material) é inerente ao capitalismo. Seu
início pode datar de 500 anos atrás, a partir do qual será necessário
preencher ainda mais de forma fragmentada e contraditória.
Se acompanhamos os esquemas de Giovanni Arrighi na sua proposta de
ciclos sistêmicos de acumulação capitalista à frente de um Estado
hegemônico: Gênova (séculos XV-XVI), Holanda (século XVIII), Inglaterra
(século XIX) e Estados Unidos (século XX), cada um desses hegemônicos
veio acompanhado de um novo adensamento da globalização (primeiro
comercial, em seguida produtiva, tecnológica, cognitiva e, finalmente,
do meio ambiente) e de uma expansão territorial das relações
capitalistas. No entanto, o que sim constitui um acontecimento recente
no anterior desta globalização econômica é sua construção como projeto
político-ideológico, esperança ou sentido comum, ou seja, como horizonte
de época capaz de unificar as crenças políticas e expectativas morais
de homens e mulheres pertencentes a todas as nações do mundo.
O “fim da história”
A globalização como relato ou ideologia de época tem mais de 35 anos.
Foi iniciada pelos presidentes Ronald Reagan e Margaret Thatcher,
liquidando o Estado de bem-estar, privatizando as empresas estatais,
anulando a força sindical trabalhadora e substituindo o protecionismo do
mercado interno pelo livre mercado, elementos que tinham caracterizado
as relações econômicas desde a crise de 1929.
Certamente foi um retorno amplificado às regras do liberalismo
econômico do século XIX, incluída a conexão no tempo real dos mercados, o
crescimento do comércio em relação ao PIB (Produto Interno Bruto)
mundial e a importância dos mercados financeiros, que já estavam
presentes nesse momento. No entanto, o que sim diferenciou esta fase do
ciclo sistêmico da que prevaleceu no século XIX foi a ilusão coletiva da
globalização, sua função ideológica legitimadora e sua exaltação como
suposto destino natural e final da humanidade.
E aqueles que se filiaram emotivamente a essa crença de livre mercado
como salvação final não foram simplesmente os governantes e partidos
políticos conservadores, mas também os meios de comunicação, os centros
universitários, comentaristas e líderes sociais. O fim da União
Soviética e o processo do que Gramsci chamou transformismo ideológico de
ex-socialistas transformados em furibundos neoliberais fechou o círculo
da vitória definitiva do neoliberalismo globalizante.
Claro! Se diante dos olhos do mundo a URSS, que era considerada até
então como referência alternativa ao capitalismo de livre empresa,
abdica da contenda e se rende ante a fúria do livre mercado — e além
disso os combatentes por um mundo diferente, publicamente e de joelhos,
abjuram de suas anteriores convicções para proclamar a superioridade da
globalização frente ao socialismo de Estado—, nos encontramos diante da
constituição de uma narrativa perfeita do destino “natural” e
irreversível do mundo: o triunfo planetário da livre empresa.
O enunciado do “fim da história” hegeliano, com o que Fukuyama
caracterizou o “espírito” do mundo, tinha todos os ingredientes de uma
ideologia de época, de uma profecia bíblica: sua formulação como projeto
universal, seu enfrentamento contra outro projeto universal demonizado
(o comunismo), a vitória heroica (final da Guerra Fria) e a reconversão
dos infiéis.
A história havia chegado à sua meta: a globalização neoliberal. E, a
partir desse momento, sem adversários antagônicos para enfrentar, a
questão já não era lutar por um mundo novo, mas simplesmente ajustar,
administrar e aperfeiçoar o mundo atual, pois não havia alternativa
frente a ele. Por isso, nenhuma luta valia a pena estrategicamente, pois
tudo que se havia tentado fazer para mudar o mundo terminaria
finalmente rendido diante do destino imutável da humanidade que era a
globalização. Surgiu então um conformismo passivo que se apoderou de
todas as sociedades, não apenas das elites políticas e empresariais, mas
também de amplos setores sociais que aderiram moralmente à narrativa
dominante.
A história sem fim nem destino
Hoje, quando ainda retumbam os últimos petardos da longa festa “do
fim da história”, acontece que quem saiu vencedor, a globalização
neoliberal, faleceu deixando o mundo sem final, nem horizonte vitorioso,
ou seja, sem nenhum horizonte. Trump não é o verdugo da ideologia
triunfalista da livre empresa, mas o legista que tem o papel de dar a
nota oficial de uma morte clandestina.
Os primeiros tropeços da ideologia da globalização são sentidos no
começo do século XXI na América Latina, quando trabalhadores, plebeus
urbanos e rebeldes indígenas não dão ouvidos ao mandato do fim da luta
de classes e fazem coalizões para tomar o poder do Estado. Combinando
maiorias parlamentares com ação de massas, os governos progressistas e
revolucionários implementam uma variedade de opções pós neoliberais,
mostrando que o livre mercado é uma perversão econômica suscetível de
ser substituída por modos de gestão econômica muito mais eficientes para
reduzir a pobreza, gerar igualdade e impulsionar crescimento econômico.
Com isso, o “fim da história” começa a se mostrar como uma singular
estafa planetária e novamente a roda da história — com suas inesgotáveis
contradições e opções abertas — coloca-se em marcha. Posteriormente, em
2009, nos Estados Unidos, o até então vilipendiado Estado, que tinha
sido objeto de escárnio por ser considerado uma trava para a livre
empresa, é puxado pela manga por Obama para estatizar parcialmente o
sistema financeiro e tirar da falência os banqueiros privados. A
eficiência empresarial, coluna vertebral do desmantelamento estatal
neoliberal, fica assim reduzida a pó frente à sua incompetência para
administrar a poupança dos cidadãos.
Logo vem a desaceleração da economia mundial, mas em particular do
comércio de exportações. Durante os últimos 20 anos, este cresce duas
vezes mais em relação ao PIB (Produto Interno Bruto) anual mundial,
porém a partir de 2012 apenas consegue igualar o crescimento deste
último, e já em 2015 é inclusive menor, com o que a liberalização dos
mercados e já não se constitui mais no motor da economia planetária nem
na “prova” da irresistível utopia neoliberal.
Por último, os eleitores ingleses e norte-americanos inclinam a
balança eleitoral a favor de uma retomada a estados protecionistas —se
for possível com muros —, além de dar visibilidade a um mal-estar já
planetário contra a devastação das economias dos trabalhadores e da
classe média, gerado pelo livre mercado planetário.
Hoje, a globalização já não representa mais o paraíso desejado no
qual se depositam as esperanças populares nem a realização do bem-estar
familiar desejado. Os mesmos países e bases sociais que a levantaram
décadas atrás se converteram em seus maiores detratores. Nos encontramos
diante da morte de uma das maiores estafas ideológicas dos últimos
séculos.
No entanto nenhuma frustração social fica impune. Existe um custo
moral que, neste momento, não revela alternativas imediatas, mas que — é
o caminho tortuoso das coisas — as fecha, ao menos temporariamente.
Acontece que a morte da globalização como ilusão coletiva não se
contrapõe à emergência de uma opção capaz de cativar e conduzir a
vontade e a esperança mobilizadora dos povos golpeados. A globalização,
como ideologia política, triunfou sobre a derrota da alternativa do
socialismo de Estado, isto é, da estatização dos meios de produção, do
partido único e da economia planejada de cima. A queda do muro de Berlim
em 1989 encena esta capitulação. Então, no imaginário planetário ficou
apenas uma rota, um destino mundial. E o que agora está acontecendo é
que esse único destino triunfante também falece, morre. Ou seja, a
humanidade fica sem destino, sem rumo, sem certeza. Porém não é o “fim
da história” – como preconizavam os neoliberais –, mas sim o fim do
“fim da história”; é o nada da história.
O que hoje resta nos países capitalistas é uma inércia sem convicção
que não seduz, um punhado decrépito de ilusões murchas e, na caneta dos
escrivães fossilizados, a nostalgia de uma globalização falida que não
ilumina mais os destinos. Então, com o socialismo de Estado derrotado e o
neoliberalismo morto por suicídio, o mundo fica sem horizonte, sem
futuro, sem esperança mobilizadora. É um tempo de incerteza absoluta no
qual, como bem intuía Shakespeare, “tudo que é sólido se desmancha no
ar”. Porém, também por isso é um tempo mais fértil, porque não há
certezas herdadas nas quais se agarrar para ordenar o mundo. Essas
certezas têm de ser construídas com as partículas caóticas desta nuvem
cósmica que deixa para trás a morte das narrativas passadas.
Qual será o novo mobilizador das paixões sociais? Impossível sabê-lo.
Todos os futuros são possíveis a partir do “nada” herdado. O comum, o
comunitário, o comunista é uma dessas possibilidades que está aninhada
na ação concreta dos seres humanos e na sua imprescindível relação
metabólica com a natureza. Em qualquer caso, não existe sociedade humana
capaz de se desprender da esperança. Não existe ser humano que possa
prescindir de um horizonte e hoje estamos compelidos a construir um.
Isso é o comum dos humanos, e esse comum é o que pode nos levar a
desenhar um novo destino diferente a este emergente capitalismo errático
que acaba de perder a fé em si mesmo.
Publicado originalmente em Rebelión
Original disponível em: (https://luizmuller.com/2017/01/06/a-globalizacao-morreu-por-alvaro-garcia-linera/). Acesso em 07/jan/2017.
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