Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 29/nov/2019...
O TRF-4, momentos antes de ser iniciada a sessão de julgamento da apelação criminal do caso do "sítio de Atibaia",
transformou-se em um verdadeiro cenário de guerra. De caminhões e
viaturas desembarcavam policiais fortemente armados. Ruas e avenidas
próximas ao tribunal foram fechadas e algumas barreiras de acesso foram
criadas.
No prédio público foi permitida a entrada apenas de
magistrados, servidores, advogados e jornalistas previamente
cadastrados. É evidente que não havia qualquer ameaça real. Mas a
estética bélica era necessária para deixar claro que o tribunal iria
julgar um inimigo. É o lawfare ocorrendo em um cenário de guerra
convencional.
De saída, o ex-presidente Lula
não teve o direito de ver observada a fila de recursos no TRF-4. Quando
a apelação julgada anteontem ingressou naquele tribunal, havia outros
1.941 recursos de igual natureza aguardando julgamento pela 8ª Turma —
boa parte deles ainda pendente de análise. O julgamento foi marcado
exatamente no dia (8/11) em que obtivemos uma decisão judicial, baseada
em decisão do plenário do Supremo Tribunal Federal, que permitiu que Lula deixasse a prisão após 580 dias
de encarceramento ilegal. Ou seja, esse julgamento parece jamais ter
tido a intenção de fazer uma revisão jurídica de uma sentença
condenatória injusta, mas sim o de reagir à decisão da Suprema Corte e à
liberdade de Lula.
A sincronia entre o órgão acusador e o órgão julgador revelada pela Vaza Jato
pôde, de certa forma, ser constatada no processamento desse recurso. Em
23/10 o órgão do Ministério Público que atua no TRF-4 peticionou no
mesmo dia em que o desembargador Gebran Neto (relator) decidiu que
levaria a julgamento em 30/10 apenas uma das diversas teses de nulidade
que apresentamos nas razões recursais. Na ocasião, defendeu a anulação
parcial do processo baseado em decisões proferidas pelo Supremo em
relação ao direito dos corréus delatados de oferecerem suas alegações
finais após os corréus delatores. Mas a conjuntura mudou.
Desde
então Lula deixou a prisão e o STJ reconheceu a nulidade que apontamos
na formatação do julgamento pretendido pelo TRF-4. Tais circunstâncias
levaram o mesmo procurador regional da República que antes havia
defendido a nulidade parcial do processo a peticionar em 19/11 — ou
seja, menos de um mês depois da petição anterior - a sustentar que
sequer a nulidade parcial do processo deveria ser reconhecida.
Na
mesma direção foram os votos proferidos pelos desembargadores federais
da 8ª Turma do TRF-4, que deixaram evidente, sobretudo pela
assertividade do voto do relator, que estavam em posição de contestação
ao entendimento sufragado pelo Supremo Tribunal Federal sobre a
nulificação de processos criminais em que os corréus delatados não
puderam falar após os corréu delatores.
Na verdade, todas as teses
de nulidade apresentadas nas razões recursais foram afastadas.
Ignorou-se o fato de que o mesmo Supremo Tribunal Federal havia provido
recurso que interpusemos como advogados de Lula (Pet. 6.780) para
reconhecer que as delações de ex-executivos da Odebrecht relacionadas ao
"sítio de Atibaia" deveriam ser analisadas pela Justiça Federal de São
Paulo. Sergio Moro,
que conduziu toda a fase de instrução do processo, recebeu mais uma vez
a artificial etiqueta de juiz imparcial — como se naquela corte ninguém
soubesse dos atos com manifesto viés político realizados pelo então
magistrado para chegar ao cargo que atualmente ocupa e das mensagens
reveladas pela Vaza Jato.
Por seu turno, a sentença proferida pela juíza federal Gabriela Hardt
mediante "aproveitamento" da decisão proferida por Moro no "caso do
tríplex" foi enaltecida — como se naquele tribunal não tivesse ocorrido
dias antes um julgamento que anulou outra sentença da mesma magistrada
sob o fundamento de que havia dúvida se "houve interceptação ilegal" e,
ainda, de que seria inadmissível "reproduzir como seus, argumentos de
terceiros, copiando peça processual sem indicação da fonte".
Para
ficar bem claro: o "aproveitamento" da sentença de Moro não foi indicado
na decisão da magistrada, mas foi apontado por nós, da defesa de Lula,
por meio de um laudo pericial documentoscópico elaborado pelo renomado
Celso Del Picchia. O caso, portanto, era idêntico àquele julgado há
poucos dias pela mesma Turma Julgadora.
Os fatos que estão
devidamente registrados nos autos foram substituídos por narrativas ou
leituras distorcidas, num autêntico terraplanismo jurídico. Para dar
exemplos. Segundo o voto do relator, Moro grampeou os advogados de Lula
por equívoco, pensando que a interceptação ocorria em um ramal de uma
empresa de palestras de Lula. A realidade que está comprovada nos autos é
que o principal ramal do nosso escritório e acompanhou em tempo real
nossas conversas e estratégias jurídicas por 23 dias — em um período em
que o Supremo Tribunal Federal estava definindo se o caso de Lula seria
conduzido pelo MPF de Curitiba ou pelo MP de São Paulo. Segundo o voto
do relator, o advogado Rodrigo Tacla Durán não poderia ser ouvido,
dentre outras coisas, porque seu endereço no exterior seria
desconhecido.
A realidade que está comprovada nos autos é que a Lava Jato
conhece o endereço de Tacla Durán e chegou a intimá-lo, por meio de
Carta Rogatória, para comparecer a uma audiência na Espanha, que acabou
não ocorrendo porque os procuradores brasileiros faltaram ao ato.
Segundo o voto do relator, estaria comprovado que R$ 700 mil do "Setor
de Operações Estruturadas da Odebrecht" teriam sido destinados a uma das
reformas realizadas no "sítio de Atibaia". A realidade que está
comprovada nos autos, por meio de um parecer técnico elaborado pelo
perito Claudio Wagner — que identificou "o caminho do dinheiro" ("follow
the money") nas supostas cópias dos sistemas da Odebrecht —, é que esse
valor foi sacado em benefício de um dos principais executivos daquele
grupo empresarial.
No mérito, os votos se dedicaram a analisar se
foram realizadas reformas no sítio. O problema é que, se a acusação é de
corrupção passiva (CP, art. 317), a condenação somente seria possível
se os julgadores tivessem conseguido demonstrar uma relação direta entre
um ato que Lula poderia ter praticado nas suas atribuições de
presidente da República entre 2003 e 2010 (o ato de ofício) e o
recebimento de uma vantagem indevida. Ou seja, teriam que evidenciar a
ocorrência do quid pro quo.
Nenhum voto, porém, evidenciou a
ocorrência dessa relação de troca — simplesmente porque ela não existiu.
A despeito disso, não apenas mantiveram a condenação pelo citado crime,
como ainda aplicaram causa de aumento de pena que pressupõe a efetiva
realização do ato de ofício envolvido na suposta conduta delituosa (CP,
art. 317, § 1º).
Também foi mantida a condenação de Lula pelo
crime de lavagem de dinheiro embora os votos proferidos não tenham
apontado qualquer conduta do ex-presidente para dissimular o uso de
valores provenientes de ilícitos, tampouco o seu conhecimento sobre
qualquer uso de dinheiro sujo.
Não bastassem tais problemas, a
condenação proferida pelo TRF-4 é, mais uma vez, incompatível com a
própria acusação formalizada pelo Ministério Público Federal contra Lula
— sobre a qual ele apresentou sua defesa. Diz a denúncia que Lula teria
recebido vantagens indevidas provenientes de oito contratos específicos
firmados pela Petrobras, por meio de reformas realizadas em um sítio do
qual ele seria o "proprietário de fato". O procurador regional da
República presente na sessão de julgamento reconheceu que o sítio não é
de Lula. E o voto do relator, acompanhado pelos demais desembargadores,
reconheceu que não é possível identificar a destinação de valores de
contratos da Petrobras para Lula ou mesmo qualquer atuação direta do
ex-presidente em relação a essas avenças.
Na falta de elementos
jurídicos para manter a condenação de Lula, os julgadores abusaram dos
argumentos políticos, seguindo a linha da sustentação oral do Ministério
Público, reforçando o caráter ilegítimo dos processos contra o
ex-presidente — que são apenas meios para a prática do lawfare contra o
ex-presidente.
Todas essas distorções, que estão ligadas à própria
credibilidade do sistema de Justiça, devem ser corrigidas pela
hierarquia judiciária. Independentemente dos recursos que serão
apresentados especificamente contra a decisão proferida ontem pelo
TRF-4, a raiz dos males está na ausência de um julgamento justo,
imparcial e independente para Lula, exatamente como apontamos no Habeas
Corpus sobre a suspeição do ex-juiz Sergio Moro que pende de julgamento
na Suprema Corte.
Original disponível em: (https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/11/29/defesa-trf-4-julgou-lula-como-inimigo.htm). Acesso em 29/nov/2019.