sexta-feira, 22 de agosto de 2014

A Corrupção do Judiciário (Roberto Luiz-CORCIOLI FILHO)

22/ag/2014...

Doutrina

A Corrupção do Judiciário

20/08/2014
 
Autor:
CORCIOLI FILHO, Roberto Luiz
"La ley es como la serpiente, solo pica a los descalzos." (Camponês salvadorenho)
"Um vizinho muito próximo do formalista é o juiz acomodado, o que se afirma apolítico e entende que não é tarefa sua fazer indagações sobre a justiça, a legitimidade e os efeitos sociais da lei. Esse é, possivelmente, o caso da maioria dos juízes." (Dalmo de Abreu Dallari)(1)
RESUMO: Este artigo trata da questão da desigualdade na administração da Justiça Penal no Brasil, focando aspectos da teoria da decisão, bem como fatores psicológicos e sociológicos que interferem no processo de sua tomada. Por meio da percepção de que o vigente discurso democrático que é sustentado por parcela dos operadores do direito na verdade encobre uma prática autoritária que em nada difere do discurso de medo difundido às massas, constata-se que, em boa medida, a efetivação das garantias penais somente encontra espaço quando o acusado ostenta alguma característica que o torne um "igual" - ou mesmo um "superior" - aos olhos do julgador, e não quando se trata de um "inimigo" social. Assim, sustenta-se que o Poder Judiciário abriga, nesse sentido, traços de corrupção. Aquela relativa aos valores democráticos, especialmente a igualdade.
PALAVRAS-CHAVE: Corrupção. Poder Judiciário. Justiça Penal. Teoria da Decisão. Aspectos Psicológicos. Desigualdade.
1 Introdução
Não parece haver correspondência com a realidade discursos que atribuem a peja de corrupto ao Poder Judiciário. Evidente que há agentes corruptos em suas entranhas, dentre juízes, escreventes e oficiais de justiça. Trata-se de uma instituição humana, é o que basta dizer, mas não se observa um problema de corrupção endêmica notadamente naquilo que é o foco de preocupação: na atuação dos agentes políticos encarregados de dizer o direito.
Porém, se o termo corrupção for tomado não de um modo estritamente ligado aos tipos penais respectivos, mas, sim, no sentido de algo deturpado de seus anunciados atributos (republicanos) e objetivos (democráticos), talvez não seja um erro, ou um exagero ao menos, observar aspectos de corrupção nas entranhas de um Judiciário ainda bastante atrelado aos donos do poder (2). É nesse sentido, pois, que parece pertinente falar de corrupção do Judiciário.
Nesse contexto, em matéria criminal, uma das questões mais instigantes que se coloca é no sentido de saber se a Justiça dispensa um mesmo tratamento aos que são oriundos das classes dominantes e àqueles que advêm de setores oprimidos e marginalizados da sociedade.
Não se trata de meramente observar que as normas penais são seletivas (3), mas principalmente de analisar os mecanismos por trás da decisão judicial em um ou em outro caso, ou seja, a questão que se coloca é se os juízes criminais decidem do mesmo modo independentemente de ser o acusado um empresário que pode cruzar com o julgador à noite no restaurante - até porque muito provavelmente não estará preso cautelarmente - ou um indivíduo que costuma perambular pelos cruzamentos que separam a residência do julgador do fórum.
O tema certamente não é novo (4), e não é, também, pouco explorado (5). Porém, parece ainda valer a pena insistir na constatação de que o sistema penal não trata a todos igualitariamente (6).
Com isso, espera-se contribuir para que cada vez mais sejam evidenciados quais mecanismos estão por trás da tomada de decisão (especialmente na área criminal, foco deste artigo), fazendo com que um número crescente de juízes tome consciência de que não são seres assépticos, no sentido empregado por Eugenio Raúl Zaffaroni (7), que estão suscetíveis de serem influenciados por fatores ocultos - e que negá-los apenas reforça projeções (8) e, portanto, acarreta um menor domínio racional sobre a tomada de decisão sob critérios de justiça -, inclusive em razão de suas classes sociais de origem, por seus interesses carreiristas (9) - as quais, em razão de uma estrutura ainda autoritária e arcaica dos tribunais (10), podem ser prejudicadas em certa medida se exercida com ampla liberdade a independência funcional -, que suas decisões carregam, sim, carga política, evidenciam opções ideológicas, e que o Judiciário, enfim, não tão raramente não é isonômico no tratamento dirigido aos "nossos" e aos "outros".
Assim, nas próximas linhas serão tecidas algumas considerações acerca do tratamento despendido pelo Judiciário no julgamento da criminalidade ordinária, de um lado, e aquela conhecida como do colarinho-branco (11), de outro - sem restringir-se, no entanto, a tal dicotomia, mas apenas como um exemplo de algo maior que se procurará tratar, no que tange às identificações dos julgadores com certos clientes do Judiciário, ao passo que em relação à imensa maioria há barreiras ao exercício pleno da alteridade. Para que tal análise faça sentido, serão discutidos, rapidamente, alguns dos possíveis mecanismos de tomada de decisão pelos julgadores - inclusive questionando-se quem seriam esses julgadores -, contextualizando a abordagem não apenas com aspectos da psicologia, mas, também, de uma análise sociológica que identifica a potencialidade de o direito ser exercido não como um fator de emancipação de todos os seres humanos no resgate e garantia de sua liberdade e igualdade, mas, sim, na manutenção do apartheid social que faz o país ostentar o 3º pior índice entre as nações mais socialmente desiguais do mundo, segundo relatório regional para a América Latina e Caribe do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) de 2010 (12).
2 Mecanismos da Decisão Judicial e a Desigualdade na Administração da Justiça Penal
Não parece ser mais segredo para quem quer que se disponha a estudar com seriedade a forma pela qual são tomadas decisões judiciais que, de acordo com Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, "acontece, muito amiúde, aliás, não sendo isso necessariamente deplorável, que mesmo um magistrado conhecedor do direito formule seu julgamento em dois tempos, sendo as conclusões a princípio inspiradas pelo que lhe parece ser mais conforme a seu senso de equidade, vindo a motivação técnica apenas como acréscimo" (13).
Seguindo nessa linha, analisando as ideias pragmatistas de Richard Posner, Ronald Dworkin indica que "sua única resposta ao argumento de que seu pragmatismo permanece vazio é a de que os juízes norte-americanos concordam o suficiente quanto aos melhores objetivos para sua sociedade, o que torna desnecessária qualquer definição ou discussão acadêmica desses objetivos" (14).
A par da importante crítica de Ronald Dworkin ao identificar que, na realidade, não há tal consenso, já que é perceptível a divergência dos juízes em diversas questões políticas importantes para o direito, tem-se que defender a legitimidade das decisões judiciais com base em um suposto consenso acerca de quais seriam os melhores objetivos para a sociedade é advogar a própria ausência de legitimidade de tais decisões, pois fundadas no arbítrio - e coisa diversa não é, na medida em que não se apresentam critérios de escolha de tais "melhores objetivos" (15). A não ser que de fato - a par do tal consenso que não há - fosse possível sustentar que os juízes tenham a capacidade de escolher invariavelmente os "melhores objetivos" para a sociedade - seja lá o que isso for (16) -, o que implicaria em amparar, inclusive, a ideia de juízes como deuses (17).
A mera seleção rigorosa para os quadros da magistratura parece não imunizar seus membros de adotarem visões não condizentes com os tais melhores anseios da sociedade (18). Em primeiro lugar, porque o mero saber técnico não qualifica o julgador para o bom exercício de sua função (19). Em segundo lugar, poder-se-ia investigar o próprio perfil da magistratura - perpetuado, inclusive, por sua forma de seleção (20) -, que é composta, no geral, por membros de uma classe média ainda muito atrelada a ideais conservadores no Brasil (21).
A partir de tal perfil, fica evidente que os juízes, em boa medida, tenderão a eleger como "melhores objetivos" aqueles que mais se encontram arraigados em seu contexto social próprio - o que, evidentemente, não representará, necessariamente, os anseios de toda a sociedade (22).
Portanto, a não ser que convenhamos admitir como legítimo o exercício arbitrário do poder, no que se implicará em negativa aos postulados de um Estado Democrático de Direito, é preciso - para além de identificar tal fenômeno na prática judicial em algumas circunstâncias (23) - atribuir "condições de veracidade" às proposições de direito (24).
Sendo assim, a adoção de uma teoria da justiça mostra-se imprescindível caso estejamos dispostos a insistir na realização concreta de promessas como a de "construir uma sociedade livre, justa e solidária" (art. 3º, I, da Constituição Federal). Levando-se em conta que o modo de organização que se tem mostrado mais legítimo contemporaneamente - por procurar consagrar os interesses de todos os seres humanos - é a "democracia constitucional, a concepção pública da justiça deveria ser, tanto quanto possível, independente de doutrinas religiosas e filosóficas sujeitas a controvérsias" (John Rawls) (25). Diante do pluralismo e da complexidade das sociedades atuais, o Estado não poderá obter um acordo político sobre questões filosóficas, morais ou religiosas sem que, nas palavras do citado autor, "ofenda as liberdades fundamentais" (p. 212); mas se "todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos", como nos parece fazer acreditar não apenas a Declaração Universal dos Direitos Humanos (Artigo I, primeira parte), mas, também, uma própria "intuição que nos parece estar implícita na cultura pública de uma sociedade democrática" (p. 213), o que melhor nos atende sob o ponto de vista político é uma teoria da justiça como equidade, cujo objetivo "não é metafísico nem epistemológico, mas prático" (p. 211), fundada na ideia contratualista de um véu de ignorância a impedir que cada membro da sociedade, em estado de posição original, conheça seu papel social e todas as contingências de sua futura posição em sociedade, obtendo-se, assim, um acordo o mais justo possível para a vida em sociedade, isto é, num "sistema de cooperação entres pessoas livres e iguais" (p. 223) (26).
Mas seja como for, ainda que possamos obter alguma segurança na compreensão da gênese da decisão judicial e até mesmo na adoção de uma certa concepção de justiça, cabe insistir em analisar a efetivação prática no cotidiano judicial dos discursos doutrinários.
Evidente que se questionados os juízes acerca de garantias, como a presunção de inocência, o devido processo legal, o direito à intimidade, dentre outros, certamente sustentariam sua grande importância e afirmariam que os observam em suas atuações práticas.
Porém, a realidade tem nos mostrado que o discurso democrático não se efetiva de modo amplo nas manifestações concretas no campo da Justiça Penal (27) - e não apenas nela.
Conforme observaram Ivan César Ribeiro e Brisa Lopes de Mello Ferrão, "em dois estudos diferentes, Bolívar Lamounier e Armando Castelar Pinheiro colocam esses juízes frente a um dilema: em um extremo manterem um contrato independente de todas as suas consequências sociais, no outro extremo ignorarem o contrato como forma de alcançar a justiça social. Os juízes, envergonhados de seu papel de aparato neutro em uma sociedade tão injusta, tendem a concordar com a segunda posição. É uma resposta que diz tanto sobre a forma como decidem quanto pesquisas que perguntam sobre hábitos de filantropia das pessoas: responde-se o que parece socialmente certo, não o que realmente se faz" (28).
Outro exemplo, agora mais ligado à teoria da decisão, é apresentado por Ronald Dworkin (29). Segundo ele, "alguns dos juízes dessa [Suprema] Corte [norte-americana] que adotaram o originalismo não observaram coerentemente seus princípios em seu próprio comportamento judicial. Seus votos em casos controvertidos poderiam ser mais bem explicados por uma agenda política muito conservadora que não depende do êxito de nenhuma interpretação feral de nossa prática jurídica".
Daí decorre a conclusão lógica acerca da importância vital da análise da prática judicial de modo a testar as hipóteses teóricas acerca da real efetivação do que, no fundo, pode ser sintetizado na figura dos próprios direitos humanos.
E se em relação a estes, de modo geral, permanece válida a assertiva de Norberto Bobbio, no sentido de que o problema de nossa época não é propriamente fundamentá-los (filosoficamente), mas, sim, efetivá-los (politicamente) (30), certamente não é diferente com aquela parcela de direitos e garantias relacionadas ao direito penal e processual penal - inclusive, e talvez primordialmente, em relação à observância do princípio da igualdade.
Na mesma linha, mas sob outro aspecto, Renato de Mello Jorge Silveira traz a lembrança da crítica acerca do distanciamento da teoria em relação às questões da prática no campo penal (31). Travam-se debates metafísicos intermináveis no direito penal enquanto milhares de jovens excluídos permanecem sendo lançados, e em números cada vez mais crescentes, às masmorras contemporâneas.
De outro lado, e retomando a crítica acerca da baixa efetivação prática das garantias já há muito consagradas, inclusive em razão dos constantes avanços que a teoria do direito e a metodologia têm proporcionado à ciência penal, não é incomum observar que a práxis não tem se aproveitado de tais progressos em diversas situações.
Conforme Winfried Hassemer, "o juiz penal de hoje parece mais inclinado a buscar soluções 'sensatas' do que seguir 'cegamente' a letra da lei, atuando, assim, mais teleologicamente do que gramaticalmente - uma tendência perigosa para o direito penal, de se tornar um 'juiz do rei'. O legislador penal contempla isso com benevolência e ainda amplia o campo de decisão do juiz, outorgando-lhe critérios vagos de decisão" (32).
Ainda segundo o autor, "enquanto sempre se soube - ou se poderia saber - que as instruções formuladas pela lógica jurídica ou pela teoria analítica do direito pouco significam para a prática jurídica (porque os erros da prática têm caráter mais substancial e político do que formal-dedutivo), agora também se sabe que as regras de caráter substancial-racional formuladas pela metodologia somente alcançam a prática, quando muito, mediante mecanismos de mediação deturpados. Daí não decorre de modo algum que a jurisdição atue de forma voluntarista ou caótica. Ela segue uma espécie de 'teoria da prática', a saber, as regras e os programas informais por ela própria desenvolvidos" (33).
Cabe questionar, nos parece, o significado de tal caráter substancial e político dos apontados "erros da prática".
Seriam eles conscientes ou inconscientes?
E a tal "teoria da prática", com "as regras e os programas informais por ela própria desenvolvidos", no que constituiria?
Podemos constatar em diversos julgados claras referências a diretrizes teóricas alinhadas a postulados libertários de uma ciência penal garantista (34), mas, agora, segundo Winfried Hassemer, há razões para sermos céticos quanto à utilização de tais diretrizes na produção das decisões e não apenas na sua apresentação (35).
Sendo assim, haveria plenas possibilidades, no âmbito dessa "teoria da prática", de serem produzidas decisões que formalmente anunciem e reforcem o valor das garantias processual-penais, mas que não as levaram em conta, verdadeiramente, em seu processo de formação, de modo que um mesmo tribunal, uma mesma turma ou câmara julgadora, ou até um mesmo magistrado, tenha um conjunto de decisões em matéria penal absolutamente heterogênea no que tange à efetivação daquelas garantias, na busca por "soluções 'sensatas'" - e em prejuízo do princípio da legalidade (36).
Citando o pensamento de Max Wertheimer (Productive thinking. Nova York; Londres: Harper and Brothers, 1945. p. 135-136), Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca indicam que "podem-se observar (...) maravilhosas mudanças nos indivíduos, como quando uma pessoa apaixonadamente sectária torna-se membro de um júri, ou árbitro, ou juiz, e suas ações mostram então a delicada passagem da atitude sectária a um honesto esforço para tratar o problema em questão de uma maneira justa e objetiva. Ocorre o mesmo com a mentalidade de um político cuja visão muda quando, após anos passados na oposição, torna-se membro responsável do governo" (37).
Não se ignora tal fenômeno, evidentemente. Porém, não raro, observa-se certa "dificuldade" nos julgadores em justamente assumirem com honestidade e transparência seu novo papel social: o de garantidores dos direitos e garantias constitucionais - ao menos na visão daqueles que leem a Constituição Federal como uma carta fundante de um Estado Democrático de Direito.
Nesse sentido, lugares-comuns e concepções divorciadas de qualquer arcabouço teórico pertinente a uma discussão jurídica séria são defendidos por muitos juízes criminais como se estivessem a indignar-se com os amigos, em uma mesa de bar, por conta da "explosão da violência em nossa cidade".
Talvez tal ausência de um exercício racional no processo decisório encontre explicações também psicológicas, além daquelas de cunho sociológico, notadamente em uma área que mexe de modo muito claro com ideias de desvio, anormalidade, pulsão e violência.
Nessa linha, conforme Lídia Reis de Almeida Prado, "não haveria um arquétipo de juiz e outro de infrator. Cada um deles seria uma das extremidades de uma mesma situação arquetípica". Por ser natural ao ego buscar neutralizar ambivalências, tem-se uma ruptura entre aquelas extremidades, de modo que um dos polos arquetípicos "permanece consciente e o outro poderá, reprimido, ficar no inconsciente e ser projetado sobre as partes do processo", o que "pode levar o magistrado a acreditar que o ato antijurídico nada tem em comum consigo: que o mal só existe no réu, fraca criatura, que vive num mundo totalmente diverso do seu" (38).
Com razão a autora, assim, ao sustentar que "um magistrado, que tenha vivências de alteridade no ato de julgar, terá maior possibilidade de outorgar aos jurisdicionados boas decisões" (39).
Mas tal alteridade, condição essencial para um julgamento justo, pode vir deturpada no inconsciente do julgador, de modo que ele apenas se coloca no lugar do outro que não seja "tão outro assim". O agente público que estudou em boas escolas - e que, portanto, "fala a mesma língua do juiz" -, o réu proveniente da mesma classe social do julgador, o acusado, no júri, que se indigna, assim como muitos magistrados e jurados, com a "incapacidade do governo em deter o aumento avassalador da violência", e que, até por isso, diz ter agido em legítima defesa ao atirar no garoto maltrapilho que o abordou no semáforo simulando portar uma arma na cintura, etc. (40). Por mais que, ao contrário do juiz, estejam todos envolvidos com uma acusação perante a Justiça Criminal.
Já imaginar-se no lugar do furtador, do assaltante ou do traficante é algo impensável para muitos julgadores.
Aí entram as projeções e sai a efetivação das garantias processual-penais de modo independente da qualificação do acusado(41).
E tem-se que o fenômeno pode já ser percebido a partir da seletividade da criminalização (42). Sobre os membros das classes oprimidas age a Justiça Penal com todo o seu rigor, ocultando-se "a criminalidade dos opressores, com suas leis tolerantes, tribunais indulgentes e imprensa discreta" (43).
A par de diversas condutas praticadas legalmente por certa parcela da população, mas que são tão ou muito mais lesivas do que a maioria dos delitos previstos em nossa legislação (44), é preciso observar que em relação às condutas tipificadas, como crimes das classes dominantes, impera uma certa característica nos julgamentos que diz respeito à observância de garantias aos réus em um nível de preciosismo muito maior do que em relação aos feitos da criminalidade ordinária (45).
Ou seja, são duplamente favorecidas: primeiro, pelo vácuo legal em relação a diversas condutas ofensivas por seus membros muitas vezes praticadas - ou por um tratamento normativo privilegiado a eles dirigido quando "às voltas com a lei" (46) -, e, segundo, pelo tratamento "mais ameno" que recebem da Justiça Criminal.
De outro lado, as classes menos favorecidas são, por sua vez, prejudicadas já pela própria condição de opressão em que vivem e também por sofrerem, de modo inverso, a seletividade do sistema penal já em sua órbita normativa (criminalização de certas condutas praticadas pelas classes excluídas), passando pelos filtros promovidos pela atividade policial, pelo foco de atuação do Ministério Público e chegando-se à órbita propriamente jurisdicional (com a cotidiana não observância de garantias e direitos na prática judiciária) (47).
A mídia propaga um claro discurso de medo em relação à criminalidade ordinária (48) - no sentido de que "os bandidos não são mantidos presos pela Justiça" (49), de que "há muitos benefícios aos marginais" (50), de que "a impunidade de assaltantes e traficantes tem fomentado a criminalidade" (51), etc. -, que não encontra, evidentemente, uma correspondência válida com a realidade (52).
Já em relação à criminalidade do colarinho-branco, a reação social (estimulada pela mídia) não é de mesma ordem.
Enquanto que no caso da criminalidade ordinária a "indignação" que se produz, notadamente nas classes médias e altas, pode estar associada a uma dificuldade de enxergar no outro um semelhante - tomando-o, isso sim, como um inimigo (53), muitas vezes -, a um anseio pela manutenção da própria exclusão social (54), ou mesmo, de modo geral, a uma "necessidade" atávica por vingança (no que se aplicaria também às classes menos favorecidas) (55). No caso de crimes do colarinho-branco, a impressão que se tem é que tal sentimento comum por vingança é, na verdade, qualificado por uma possível inveja inconsciente em relação aos "benefícios" fáceis obtidos pela "esperteza" do corrupto (56).
É claro que também não se pode deixar de notar um "forte sentimento experimentado pelo cidadão comum quanto à desigualdade da repressão penal", notadamente "entre os membros das classes mais desfavorecidas" (57), mas exercido, vale observar, com aquele comedimento próprio do homem cordial (58).
Mas tanto no caso do discurso relativo à criminalidade ordinária quanto naquele atinente aos delitos do colarinho-branco o que se tem é a hegemonia de classe operando. Em relação ao primeiro, para que se mantenha e se justifique a exclusão (vendo na pobreza o inimigo, que deve ser combatido - e não a ela, por meio da emancipação de todos os cidadãos com vista a uma vida verdadeiramente digna -, conforme o discurso da Lei e da Ordem). Já em relação ao segundo, observa-se uma reação aos ruídos produzidos pelo sistema - ou, caso prefira-se, pelo mercado -, ou seja, o desvio para além do aceitável - leia-se, para além do que, sendo igualmente prejudicial ao povo, é convenientemente mantido na legalidade, na lógica do mercado - e que não tenha sido feito com a devida cautela para que fosse mantido longe dos olhos e ouvidos das classes subalternas ou mesmo da própria classe média (59) - umas e outras também convenientemente alienadas das reais discussões políticas importantes para os rumos da sociedade. E cabe destacar que tal mencionada reação é, inclusive, incentivada pelas próprias classes dominantes. Isso porque a hegemonia é exercida através de um poder simbólico, que "é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem" (60), de modo que para esse mecanismo que opera na alienação é importante que se acredite que há uma ferramenta social (o direito penal - simbólico, evidentemente) que dará conta dos desvios, inclusive das elites.
Ocorre que, se de um lado - e em certo sentido -, o direito penal simbólico é utilizado para meramente iludir a população acerca da promessa de igualdade contida nas ideias de República e de Estado Democrático de Direito, de outro, ele traz consequências bastante reais - e nefastas! - em face dos "inimigos de sempre" (61).
Seja como for, a solução não parece ser o recrudescimento no combate aos delitos usualmente praticados pelas classes dominantes através, por exemplo, de um Judiciário "menos atento" às garantias constitucionais também em relação a eles - e não apenas em relação àqueles crimes geralmente cometidos pelas classes sociais oprimidas (62).
Mas retomando o processo de decisão judicial que, no mais das vezes, implica na apontada discriminação em razão da origem social do acusado, tem-se que em uma sociedade em que há clara preponderância de uma pequena parcela da população no poder político e econômico, na qual a classe média expressa, forjada em boa parcela pela mídia (63) - da qual é forte sustentáculo através da expressão máxima de sua cidadania, o consumo -, sentimentos de exclusão em relação a uma grande massa de pobres ou mesmo ainda muitos miseráveis, bem como uma tendência de enxergar violência apenas e tão somente na chamada delinquência ordinária (64), superdimensionando-a, inclusive, o "auditório que se propõe persuadir, a suas exigências em matéria de direito e de justiça" (65), tudo isso forjará a motivação - e, portanto, o próprio conteúdo - de boa parcela das decisões em matéria penal (que aqui nos interessa) no sentido de satisfazer uma ampla exigência por vingança e proteção (66), uma vez que, conforme Chaïm Perelman, "o direito é, simultaneamente, ato de autoridade e obra de razão e persuasão" (67), sendo que, "detentor de um poder, num regime democrático, o juiz deve prestar contas do modo como o usa mediante a motivação. Esta se diversifica conforme os ouvintes a que se dirige e conforme o papel que cada jurisdição deve cumprir" (68).
Nesse ponto, a indagação que surge é justamente acerca da legitimidade de uma argumentação produzida com vistas aos aplausos de uma plateia que pouco ou nada está afeita, em seu dia a dia, aos princípios e garantias constitucionais (69).
De outro lado, poder-se-ia questionar se em um Estado Democrático de Direito haveria espaço a uma completa desvinculação aos "sentimentos públicos" por parte do juiz?
Aí parece que é imperativo retornarmos ao início. Não do presente texto, mas da própria concepção de Estado e de sociedade. Desejamos, afinal, um governo de homens ou um governo de leis?
Parece não ser necessário perder-se muito tempo em discutir a conveniência de um governo de leis, limitando-se o arbítrio, ordenando a vida social por critérios de Justiça, etc.
Para a constituição de um governo de leis, este, necessariamente, deve estar calcado em um sistema de justiça, sob pena de não haver razão para a sua existência, frente ao arbítrio de um governo de homens - a não ser que consideremos a "conveniência" de se "legitimar" um Estado arbitrário em um discurso legalista, em um sistema normativo, ainda que não provido de bases democráticas ou mesmo que estas sejam constantemente desrespeitadas pela produção e aplicação normativa.
Assim, se o melhor caminho é regerem-se as sociedades pelo governo das leis, se estas devem estar inseridas em um sistema de justiça e se este possui em sua base valores tidos como caros por dada sociedade, os quais devem ser observados por toda a cadeia subsequente (70), é um imperativo lógico admitir que um verdadeiro Estado Democrático de Direito somente é constituído justamente sob essas bases e, sendo assim, não permite que "o são sentimento do povo" (71)seja fundamento válido para a quebra dos próprios valores fundantes da ordem jurídica. Para além disso, tem-se que não se pode manter incólume um discurso democrático e republicano sem que a prática do poder estatal se afine, verdadeira e cotidianamente, a ele.
Nesse contexto, cabe observar que, "contrariamente aos poderes executivo e legislativo que são poderes de maioria, o juiz julga em nome do povo, mas não da maioria, em tutela das liberdades também das minorias" (72).
Assim, deve assegurar o respeito aos princípios e garantias constitucionais ainda que a "opinião pública" brade o contrário em dado caso concreto. Nesse sentido, conforme Eros Grau, "a independência é expressão da atitude do juiz em face de influências provenientes do sistema e do governo. Permite-lhe tomar não apenas decisões contrárias a interesses do governo - quando o exijam a Constituição e a lei -, mas também impopulares, que a imprensa e a opinião pública não gostariam que fossem adotadas" (73).
É preciso, em outras palavras, que haja juízes no Brasil conscientes de suas falibilidades, de sua condição humana, das influências de fatores psicológicos em seus julgamentos, de que é a eles atribuída a missão de decidir sobre bens caríssimos aos membros da sociedade, sendo-lhes exigido, por um imperativo ético de confiança social, antes de mais nada, que coloquem sua independência funcional na aplicação da justiça acima de interesses carreiristas, de receios da mídia, de pressões de massa, exercendo o ato de julgar com alteridade e com vista à consecução prática cotidiana dos valores próprios do Estado Democrático e Social de Direito consagrado pela norma fundante.
3 Conclusão
É verdade que, conforme Cláudia Maria Cruz Santos, não há unanimidade na tese de que a Justiça dispensa um tratamento desigual em razão dos seus diferentes clientes (74); porém, não nos parece possível negar certas evidências da prática judiciária (e do sistema penal como um todo) a apontarem na direção de que há, sim, ao menos, "algumas diferenças no sancionamento", conforme expressão utilizada pela autora em questão - e conforme esperamos termos podido demonstrar ao longo do presente artigo.
A questão central do julgador, aquilo que lhe mais importa para bem desempenhar o seu papel, parece-nos condensar-se na figura da alteridade, uma vez que, conforme afirmou Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, "é mister, para intervir numa controvérsia cujo desfecho afetará determinado grupo, fazer parte desse grupo ou ser-lhe solidário". O "fazer parte desse grupo" é - para o que nos interesse neste breve estudo - estar e saber-se inserido na sociedade, reconhecer-se um criminoso em potencial - ou até mais (75) -, um infrator, tomar consciência de sua falibilidade humana, não pretender ordenar a tudo e a todos, admitindo que não há perfeição na vida em sociedade. O "ser-lhe solidário" é ter tudo isso em conta e colocar-se no lugar do réu, pensar em sua formação, imaginar-se nascendo, crescendo e vivendo em seu contexto social, familiar, geográfico. E, ao contrário do que uma leitura superficial dessa colocação pode indicar, nada disso implica em tornar-se o juiz parcial. Ainda conforme os autores citados,
"ser imparcial não é ser objetivo, é fazer parte de um mesmo grupo que aqueles a que se julga, sem ter previamente tomado partido por nenhum deles" (76).
Talvez a alteridade venha sendo mais exercitada pelos julgadores, em assuntos criminais, justamente quando seja óbvia que assim ocorra (réus mais parecidos com os julgadores, etc.). Porém, se a partir da constatação de que "a evolução da humanidade foi no sentido de uma complexidade maior da vida social, tornando-se mais difícil a captação da ideia predominante de justiça", tendo-se que "a consequência é que, por mais que se queira evitar, não há como recusar a profissionalização dos juízes", não se pode admitir que tais profissionais não possam ser, em primeiro lugar, selecionados e, em segundo lugar, melhor preparados no sentido de exercerem conscientemente a razão - não aquela que signifique somente ter "bons conhecimentos técnico-jurídicos, pois o juiz que oferecer apenas isso, ainda que em alto grau, não conseguirá ser mais do que um eficiente burocrata" (77), e muito menos, evidentemente, a que reduza o pensamento a um positivismo asséptico e a um formalismo vazio, mas, sim, a que implique em uma maior consciência acerca dos fatores que podem influir no processo de tomada de decisão, que permita, a partir daí, tornar o juiz ciente de que deve esforçar-se para evitar projeções, que o faça perceber e admitir-se um ser político e que se valha de seus instrumentos de trabalho e de sua posição para a verdadeira consagração da justiça. Uma racionalidade que permita o juiz, também, colocar-se no lugar do diferente.
Notas
(1)DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 40.
(2)E aqui, evidentemente, não se poderia deixar de remeter à obra de Raymundo Faoro (Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 5. ed. São Paulo: Globo, 2012. p. 17-838). A partir da noção de que há uma seleção na criminalização, Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli (Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 8. ed. São Paulo: RT, 2009. p. 7. v. 1) sustentam que "isso demonstraria que o 'Estado de Direito' ou 'República' em sentido estrito, cuja máxima fundamental é a submissão de todos ao direito, não se realizaria perfeitamente, mas sempre por graus".
(3)Apresentando todo um panorama que vai desde a análise dos crimes do colarinho-branco até a chamada teoria crítica, passando, ainda, pelo labelling approach (além de outras escolas sociológicas do crime, mas que não vêm ao caso nesta abordagem), remete-se a Sérgio Salomão Shecaira (Criminologia. 2. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 195-203, 284-307, 325-352).
(4)Já em 1959, Arruda Campos publicou o seu A Justiça a Serviço do Crime (2. ed. São Paulo: Saraiva, 1960. p. 29), no qual anotou que "a Justiça está ao serviço dos grupos de homens fortes, que lhe distribuem as tarefas através de Códigos e leis esparsas. Castiga o 'vigarista' que iludiu o paspalho, recebendo dinheiro bom a trôco de papéis velhos, mas não põe a mão no incorporador de condomínios-fantasmas, que iludem o mesmo indivíduo, recebendo dêle dinheiro bom a trôco de papéis novos, sem valor, porque, num caso, agindo sob a disciplina do Código Penal, o agente perpetrou um estelionato, enquanto nos outros, manobrando sob a proteção do Código Civil, realizou apenas um negócio".
(5)Conforme se observa, por exemplo, das amplas citações realizadas por Cláudia Maria Cruz Santos (O crime de colarinho branco: da origem do conceito e sua relevância criminológica à questão da desigualdade na administração da justiça penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. p. 197-267), analisando desde o momento da criminalização até a execução penal.
(6)As opções por não fazê-lo poderiam decorrer ou da discordância acerca de tal assertiva ou da anuência - ou pelo menos da indiferença - que assim o seja mesmo. Já deixamos claro que a percepção que temos é a de que há tal tratamento diferenciado - percepção esta que, na medida do possível, foi sendo testada no desenvolver do artigo, mas sempre, é claro, contaminada já pelas concepções construídas ao longo de nosso contato com a prática e também com leituras que remetiam a tal conclusão. A partir daí, anuir com tal estado de coisas - ou ficar indiferente a ele, o que talvez seja ainda pior - não se mostra um caminho aceitável, obviamente. Portanto, restam, mesmo, a denúncia (na medida do possível racional e crítica) e o esforço por procurar meios de contornar essa deturpação no exercício do poder - entrando, então, o debate acadêmico. Sempre com a preocupação, no entanto, de diálogo com a práxis.
(7)ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Dimensión política de un poder judicial democrático. Revista do IBCCRIM, n. 4 [1993], p. 27. Segundo ele, "el juez ideológicamente 'aséptico' no es más que una construcción artificial, un producto de retorta ideológica, un homúnculo que la realidad no admite. Lo que la triste realidad nos ofrece cuando se promueve este estereotipo, son jueces que pretenden ser imparciales cuando en realidad son altamente subjetivos y arbitrarios, porque partiendo de la tesis de que sus criterios son 'objetivos', lo que hacen es pretender imponer a todos sus valores subjetivos, o bien, esta promoción engendra jueces que se entrenan para ocultar su ideología o que se acostumbran a sostener puntos de vista incompatibles, según la marcha y el ritmo de los intereses de turno. No son jueces sin ideología, sino jueces que ocultan su ideología o que asumen públicamente cualquier ideología, lo que no sólo es sumamente peligroso, sino, también, denigrante para la persona y para su derecho humano a la identidad". Nesse sentido, bastante comum observar na prática judicial um mesmo julgador afirmando-se ser um mero "escravo da lei", não assumindo "responsabilidade pelas injustiças e pelos conflitos humanos e sociais que muitas vezes decorrem de suas decisões", conforme bem observa Dalmo de Abreu Dallari (O poder cit., nota 1supra, p. 82) para fundamentar a vigência de dada norma infraconstitucional positiva que é colocada em confronto com a Constituição, ao passo que em outros momentos avoca conceitos como a "reserva do possível" para justificar o desrespeito a um direito que deveria ser efetivado pelo Estado. No documentário Bagatela (direção de Clara Ramos, coprodução de Clara Ramos, Polo de Imagem e Fundação Padre Anchieta - TV Cultura, 52 minutos), por exemplo, um dos operadores do direito ouvidos, Juiz no Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo, sustentou, em algumas passagens, seu desacordo em aplicar o chamado princípio da insignificância, afirmando ser, como magistrado, justamente o famigerado "escravo da lei" (13'02'') - sem analisar a questão sob o prisma da supremacia da Constituição, capaz, portanto, de não atribuir validade a incriminações advindas de normas infraconstitucionais eventualmente colidentes com as daquela; mas a mesma obediência irrestrita à lei parece não ser verificada em outro trecho de seu discurso, no qual afirma o seguinte: "como eu não gostaria de trabalhar com alguém já condenado, eu não gosto de mandar alguém, por exemplo, prestar serviço à comunidade numa escola ou em um hospital, porque alguém, em nome dessa escola ou em nome desse hospital, celebrou um convênio qualquer e deixou com que seus funcionários tenham esse tipo de acesso. Eu não vejo isso como salutar" (35'14'' - 35'38''). Nessa linha, Débora Regina Pastana (Justiça penal no Brasil contemporâneo: discurso democrático, prática autoritária. São Paulo: Unesp, 2009. p. 142), ao sustentar "a inércia do Judiciário e do Ministério Público ante o descaso estatal com o nosso sistema penitenciário que se encontra em condições precárias e desumanas", destaca que "nessas ocasiões, o princípio da legalidade cai por terra, e tanto o guardião (Judiciário) como o fiscal da lei (Ministério Público) se contentam em responsabilizar o Poder Executivo"; ou seja, não se sustenta, seja sob qual ótica for, a figura do juiz que seria um mero aplicador mecânico de dispositivos normativos e com isso carregaria em si a "imparcialidade" - uma vez que tal opção já traz a carga de suas escolhas, escolhas essas que, certamente, não encontram guarida na Constituição de perfil social-democrata de 1988. De fato, o discurso do "isso não é problema meu", a par de constituir uma visão míope acerca do papel do juiz como garantidor dos direitos constitucionais (sejam os positivados em regras jurídicas ou os advindos de princípios), conflita-se até mesmo com a lógica, na medida em que o juiz não julga abstratamente. Suas decisões têm consequência na realidade, e se não são factíveis não têm razão de ser. Conforme Chaïm Perelman (Éthique et droit. Bruxelles: L'universite de Bruxelles, 1990. Trad. port. de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão: Ética e direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 43), por exemplo, "o juiz, quando se trata de condenar um criminoso, normalmente não se preocupa com nada além de aplicar a lei, dizendo-se que sempre haverá bastante lugar nas prisões, mas, se a prisão se tornar pequena demais para o número de prisioneiros que devem ser detidos, se o juiz for obrigado a considerar esse novo fato na aplicação da pena, será levado a proporcionar esta com o número total das pessoas suscetíveis de compartilhá-la".
(8)PRADO, Lídia Reis de Almeida. O juiz e a emoção: aspectos lógicos da decisão judicial. 4. ed. Campinas: Millennium, 2008. p. 50-51. Segundo a autora, "a profissão de julgar dá ensejo a muitas projeções, conforme salientado. O importante é, no interesse das pessoas envolvidas no processo, projetar menos, o que apenas se dará caso o juiz entre em contado com o infrator interior".
(9)De acordo com Débora Regina Pastana (Justiça cit., nota 7 supra, p. 94), há, nos tribunais, em razão do "controle acerca da conduta pessoal e profissional dos juízes, muitas vezes funcionando como instrumento de pressão e de sujeição às regras que, embora veladas, possuem legitimidade", "a impossibilidade de equilibrar expectativas sociais com as aspirações individuais e carreiristas dos magistrados". A mesma autora, comentando acerca do "movimento dos juízes alternativos que em suas atuações rejeitam o modelo das tradicionais organizações corporativas", sustenta que eles, "ao contrário da maioria, certamente sentem o peso da hierarquia oficiosa ao serem avaliados pelas suas polêmicas decisões. Seu grau de merecimento promocional é, geralmente, inversamente proporcional à sua coragem cívica explicitada em decisões nada pragmáticas ou positivistas" (p. 95). Também nessa linha, Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli (Manual cit., nota 2 supra, p. 71-72), ao tratarem do que chamam de um processo de fossilização - fenômeno paralelo à criminalização das classes menos favorecidas - que se aplica a alguns membros das classes oprimidas, selecionados para, deslocados de seu grupo originário e, nessa linha, mantendo "permanentes atitudes de desconfiança", servirem de "bode[s] expiatório[s] para os excessos do sistema" - como se dá com o recrutamento de jovens da periferia para exercerem a atividade policial, empurrando-os em uma guerra contra outros jovens (sendo que os autores afirmam que esse grupo de jovens fossilizados corrompe-se e isso faz com que desenvolvam uma "solidariedade incondicional para com o grupo artificial", no que interpretaríamos como sendo os eventuais abusos praticados nessa guerra) que, por um motivo ou outro, acabaram sofrendo aquele outro processo de seleção (a criminalização), o que gera, inclusive, intencionais fissuras nas classes oprimidas, contribuindo, assim (e ao lado de outros mecanismos, como o oferecimento de uma educação menos do que medíocre aos que dependem do sistema público), para a baixa mobilização política de seus membros, que são levados a acreditar, assim como as classes médias, que o inimigo é o criminalizado (que não por acaso é selecionado nas classes oprimidas), e não aqueles que mantêm um modo de organização social absurdamente excludente -, sustentam que "em outro nível, o sistema penal procura compartir essa mentalização com o segmento dos magistrados, Ministério Público e funcionários judiciais. Seleciona-os dentre as classes médias, não muito elevadas, e lhes cria expectativas e metas sociais da classe média alta que, enquanto as leva a não criar problemas no trabalho e a não inovar para não os ter, cria-lhes uma falsa sensação de poder, que os leva a identificar-se com a função (sua própria identidade resulta comprometida) e os isola até da linguagem dos setores criminalizados e fossilizados (pertencentes às classes mais humildes), de maneira a evitar qualquer comunicação que venha a sensibilizá-los demasiadamente com a dor daqueles. Esse processo de condicionamento é o que denominamos burocratização do segmento judicial".
(10)Sobre o ponto, vide: FELIPPE, Kenarik Boujikian; CORCIOLI FILHO, Roberto Luiz. Judiciário na democracia e da ditadura. Folha de S. Paulo, 04.09.2012, p. A3.
(11)Referência obrigatória sobre o assunto, como se sabe, é a obra precursora de Edwin H. Sutherland (White collar crime. New Haven: Yale University Press, 1961. Trad. esp. de Rosa del Olmo: El delito de cuello blanco. Caracas: Universidad Central de Venezuela, 1969. p. 9-201). Oportuno desde já destacar, conforme Cláudia Maria Cruz Santos (O crime cit., nota 5 supra, p. 9-10), que "se a descoberta de Sutherland do conceito de white-collar crime abrira à criminologia muitas das portas que conduziram à reviravolta superadora do positivismo criminológico, ela também servira de exemplo fulcral a toda uma corrente de pensamento preocupada com as discriminações injustificadas ao longo do funcionamento das instâncias de controlo".
(12)PNUD. IDH-D reflete fosso no desenvolvimento. Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2012.
(13)PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Traité de l'argumentation: la nouvelle rhétorique. Bruxelles: L'universite de Bruxelles, 1992. Trad. port. de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão: Tratado da argumentação: a nova retórica. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 48.
(14)DWORKIN, Ronald. Justice in robes. Cambridge: Harvard University Press, 2006. Trad. port. de Jefferson Luiz Camargo: A justiça de toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 36-37.
(15)Conforme Ronald Dworkin (Justice cit., nota 14 supra, p. 34-35), juristas que se autodenominam "realistas" têm insistido "que as proposições jurídicas não são nem verdadeiras nem falsas, mas apenas expressões das preferências subjetivas dos juízes ou de outras autoridades, de modo que o projeto de buscar as condições de veracidade das proposições de direito não passa de perda de tempo". Mas reconhecer que tal possa até ocorrer na prática, não implica em admitir como válida essa forma de tomada de decisão. Tampouco isenta de perquirirmos quais os mecanismos relacionados justamente à formação e explicitação de tais "preferências subjetivas dos juízes", e o que tais mecanismos podem nos mostrar acerca da forma como o poder de decidir é exercido em nossa sociedade.
(16)Neste ponto - e acerca de falsas concepções da realidade em matéria penal, por exemplo -, tem-se, conforme Thomas Sambuc (Folgenerwägungen im Richterrecht. Berlin: Duncker e Humblot, 1977. S. 131 f, apud HASSEMER, Winfried. Über die Berücksichtigung von Folgen bei der Auslegung der Strafgesetze. In: HORN, Norbert; LUIG, Klaus; SÖLLNER, Alfred [Hrsg.]. Europäisches Rechtsdenken in Geschichte und Gegenwart: Festschrift für Helmut Coing zum 70. Geburtstag. München: Verlag C. H. Beck, 1982. S. 493-454. Trad. port. de Mariana Ribeiro de Souza, rev. por Carlos Eduardo de Oliveira Vasconcelos. Sobre a consideração das consequências na interpretação da lei penal. In: VASCONCELOS, Carlos Eduardo de Oliveira [Org.]. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008. p. 131), que "particularmente os juízes criminais aferram-se a um senso comum longamente cultivado, ainda que teorias sociais bem fundamentadas conduzam a resultados inteiramente diversos".
(17)Acerca da figura arquetípica do juiz, vide: PRADO, Lígia Reis de Almeida. O juiz cit., nota 8 supra, p. 44-50.
(18)Isso sem questionar se, de fato, há um processo seletivo que se paute por valores verdadeiramente republicanos. Conforme Rafael Custódio, Flávia Annenberg, Ester Rizzi e Rodnei Jericó (Quem são nossos juízes? Folha de S. Paulo, 09.10.2012, p. A3), "há tempos sabe-se que o Poder Judiciário paulista realiza uma seleção que privilegia um determinado perfil de seus integrantes. Esse argumento é tão verdadeiro que foi necessária a aprovação de uma lei estadual para garantir que, nas duas primeiras fases do concurso de ingresso na magistratura, os candidatos não fossem identificados (Lei nº 9.351/96). Apenas com essa lei a proporção de mulheres selecionadas para a última fase tornou-se compatível com a quantidade de inscritas". Na mesma linha, Débora Regina Pastana (Justiça cit., nota 7 supra, p. 96), analisando os índices significativos de ingresso de "filhos, netos ou sobrinhos de magistrados" na carreira e destacando, portanto, "que a procura endógena ou hereditária, compreendida de forma ampla, ainda tem vez no Judiciário como procedimento de seleção de novos magistrados", destaca que "fica evidente a preocupação da corporação em não perder o controle sobre o perfil e a identidade do magistrado que se espera moldar. Ao recrutar juízes oriundos de famílias pertencentes ao mundo jurídico, a possibilidade de ameaça da imagem institucional que a ideologia dominante se empenha em construir é menor. Além de tornar a Justiça um 'negócio de família', garante uma durabilidade maior dos seus valores fundantes".
(19)Para Lígia Reis de Almeida Prado (O juiz cit., nota 8 supra, p. 137-140), que defende em sua obra a "importância da emoção no ato de julgar", "no Brasil, apesar dos avanços do Judiciário no que se refere à crescente sensibilidade e criatividade de vários de seus integrantes, pode-se ainda divisar o predomínio de uma racionalidade avessa ao sentimento", conforme se verifica "nas sentenças, nos currículos dos cursos jurídicos, nas provas dos concursos para ingresso na judicatura e também no modo como ainda são ministradas as aulas nas Escolas da Magistratura". De acordo com Débora Regina Pastana (Ensino jurídico no Brasil: perpetuando o positivismo científico e consolidando autoritarismo no controle penal. Educação: Teoria e Prática, n. 29 [2007], p. 109-110), "ainda hoje o acadêmico tem a certeza de que para compreender o direito é preciso estudar apenas as normas jurídicas, conhecer a sua lógica e seu funcionamento. Essa compreensão dispensa o estudo de disciplinas como Sociologia, Filosofia e Ciência Política, que, por sua natureza, nada acrescentam, sendo consideradas 'perfumarias' que atravancam o caminho do estudante, mais interessado no aprofundamento das disciplinas técnicas e, portanto, profissionalmente mais úteis". Seguindo, afirma a autora que, "fundamentado numa formação tecnicista fechada e voltado para atender as necessidades imediatas do mercado e do modelo político de dominação, esse ensino superior foi estruturado a partir de uma visão reducionista, sendo composto, principalmente, por disciplinas que objetivam a formação específica do acadêmico com pouca preocupação com sua formação geral".
(20)Segundo Débora Regina Pastana (Ensino cit., nota 19 supra, p. 113-114), citando estudo do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ, vinculado à Universidade Cândido Mendes, os chamados cursos preparatórios para as carreiras jurídicas, que mantêm a mesma "natureza tecnicista" da graduação e que se apresentam como uma "verdadeira continuação" a ela, importam "ônus em termos de tempo e de custos, dificilmente compatíveis com os recursos disponíveis pelos candidatos de famílias pobres. Consequentemente, a frequência a cursos preparatórios é menor entre os juízes oriundos de estrato social mais baixo, sendo, portanto, mais um indicador da apropriação da carreira pelas camadas sociais de mais alta renda".
(21)Nesse sentido, remete-se à palestra proferida por Marilena Chauí no debate A Ascensão Conservadora em São Paulo, realizado em 28 de agosto de 2012 na Universidade de São Paulo (Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2012). E de modo mais amplo, acerca da "ideología de la clase media burguesa en los países con economía neocapitalista", Massimo Pavarini (La criminología. Buenos Aires: Siglo XXI, 1980. Trad. esp. de Ignácio Muñagorri: Control y dominación: teorías criminológicas burguesas y proyecto hegemónico. Buenos Aires: Siglo XXI, 2002. p. 136-137), aponta a "incapacidad de dar un sentido real al mundo social que la circunda, una indiferencia agnóstica hacia la política y en general hacia los problemas sociales, una ausencia de los valores que no estén ligados al consumismo y al éxito económico personal (no tanto una profesión que satisfaga cuanto una profesión que enriquezca), una dependencia absoluta de los modelos de comportamiento (como la moda, la organización del tiempo libre, etc.) impuestos por los medios de comunicación de masas". E sobre os reflexos da ideologia de sua classe nas atuações do juiz, tem-se que, conforme Débora Regina Pastana (Justiça cit., nota 7 supra, p. 221), "José Renato Nalini (2004), ao comentar a tendência dos juízes em encarcerar em regime fechado, mesmo havendo outras opções, sustenta que os magistrados são produto de seu meio. 'Se a sociedade vem se mostrando cada vez mais intolerante com a delinquência, é natural que também os juízes tendam a refletir essa mentalidade, ignorando penas alternativas, o regime semiaberto e, quando possível, agravando as sanções impostas aos condenados'. Mais uma vez, o que se observa é a naturalização do autoritarismo e a desvirtuação das responsabilidades democráticas desse poder. Esse juiz não é produto do meio; ao contrário, ele ajuda a produzir o meio excludente ao reproduzir a ideologia liberal de ordem, necessariamente contundente e asséptica". Porém, não se pode perder de vista, de outro lado, que, de acordo com Pierre Bourdieu (Le pouvoir symbolique. Paris: Fayard, 2001. Trad. port. de Fernando Tomaz: O poder simbólico. 16. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. p. 237), "o direito é a forma por excelência do discurso actuante, capaz, por sua própria força, de produzir efeitos. Não é demais dizer que ele faz o mundo social, mas com a condição de se não esquecer que ele é feito por este". O mesmo autor pontua, ainda, as "afinidades que unem os detentores por excelência da forma do poder simbólico [que seriam, conforme o autor, os agentes encarregados de produzir o direito] aos detentores do poder temporal, político ou econômico, e isso não obstante os conflitos de competência que os podem opor. A proximidade dos interesses e, sobretudo, a afinidade dos habitus, ligada a formações familiares e escolares semelhantes, favorecem o parentesco das visões do mundo. Segue-se daqui que as escolhas que o corpo deve fazer, em cada momento, entre interesses, valores e visões do mundo diferentes ou antagonistas têm poucas probabilidades de desfavorecer os dominantes, de tal modo o etos dos agentes jurídicos que está na origem e a lógica imanente dos textos jurídicos que são invocados tanto para os justificar como para os inspirar estão adequados aos interesses, aos valores e à visão do mundo dos dominantes".
(22)Conforme Lígia Reis de Almeida Prado (O juiz cit., nota 8 supra, p. 106), "reconhece-se que os tribunais constituem um solo fértil para as projeções, pois a subjetividade do magistrado e de seus valores (ao lado dos valores sociais) interferem na interpretação da lei. Em decorrência da presença inevitável de tais projeções, ínsitas ao ato de julgar, que se formam a partir da própria leitura do processo, cai por terra o ideal de neutralidade do julgador".
(23)Conforme sustentam Ivan César Ribeiro e Brisa Lopes de Mello Ferrão (Coronéis, juízes e economistas: é o poder, estúpido! Boletim IBCCRIM, n. 172 [2007], p. 12), em oposição a uma ideia difundida por certos economistas e alguns dos que propõem reformas no Judiciário no sentido de que este Poder não daria segurança aos investidores, na medida em que os juízes não respeitariam contratos, com vistas justamente a mitigar diferenças sociais, "[a] ideia de um juiz ativista, entretanto, causa espécie aos que militam na profissão e aos que frequentaram cursos jurídicos. O processo de seleção dos juízes e sua forma de carreira faz com que apenas os mais ciosos da declinação perfeita do latim e os mais orgulhosos do conhecimento pormenorizado do direito escolham a carreira. Difícil imaginar esse juiz que põe a ideologia à frente de seu conhecimento jurídico e orgulho profissional". Ainda conforme os autores supra, contrariando tal hipótese do pensamento econômico, tem-se que a pesquisa por eles desenvolvida e refletida no artigo Os Juízes Brasileiros Favorecem a Parte Mais Fraca? (Berkeley, University of California, 2006. Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2012, p. 7) indica que "a parte mais forte tem 39% mais de chance de ter o contrato que lhe favorece mantido do que a parte mais fraca na mesma situação", bem como "uma parte mais forte que tenha uma cláusula contratual a seu favor tem 45% a mais de chance de ver o contrato mantido, se comparado a uma parte mais fraca que também tenha uma cláusula contratual a seu favor". Conforme Ivan César Ribeiro (Robin Hood versus King John: como os juízes locais decidem casos no Brasil? Disponível em: . 2006. p. 2), "uma parte com poder apenas local tem cerca de 38% mais chances de que uma cláusula contratual que lhe é favorável seja mantida e entre 26% e 38% mais chances de ser favorecido pela Justiça do que uma grande empresa nacional ou multinacional, um efeito aqui batizado de subversão paroquial da justiça".
(24)Conforme Ronald Dworkin (Justice cit., nota 14 supra, p. 34), mas atribuir as tais "condições de veracidade" às proposições de direito não parece ser uma tarefa das mais fáceis. Conforme Winfried Hassemer (Juristische Hermeneutik. Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie [1986], S. 195-212. Trad. port. de Odim Brandão Ferreira, rev. por Carlos Eduardo de Oliveira Vasconcelos: Hermenêutica jurídica. In: VASCONCELOS, Carlos Eduardo de Oliveira [Org.]. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008. p. 85-86), "é teoricamente compreensível e sempre confirmado com clareza na práxis judicial que a escolha de uma determinada regra de interpretação é transcendental. Se se julga de acordo com a vontade do legislador, de acordo com a literalidade da norma ou de acordo com o seu sentido, produzem-se, em regra, diversos resultados de interpretação. Consequentemente, as regras de interpretação somente poderiam render uma 'vinculação' do juiz, caso prescrevessem não apenas um respectivo e determinado procedimento de interpretação - o que elas fazem -, mas se também prescrevessem qual a regra interpretativa a ser seguida em determinada situação a decidir - algo que elas não fazem -, isto é, se elas contivessem uma metarregra para sua aplicação. Tal regra não existe. A tentativa às vezes empreendida de estabelecer uma relação racional entre as regras de interpretação, como, por exemplo, de ordená-las numa escala, não é teoricamente convincente nem acatada do ponto de vista prático. Logo, as regras de interpretação não são determinantes do resultado. Elas são ofertas para legitimar resultados desejados (e encontrados de outro modo), que coincidem com a vontade do legislador, a literalidade da lei, etc. Elas são meio de exposição, não de produção da interpretação da lei". Como, então, alcançar a "essência" do justo ou obter a "correta" aplicação de determinada norma? Apesar de tal tema não ser o objeto central do presente estudo, parece que em uma sociedade complexa, pluralista, não há, de fato, alternativas aos caminhos sedimentados com base na argumentação. Múltiplos, inconstantes, sujeitos a desvios, é verdade, mas, por isso mesmo, reais, posto que a condição humana é, ela própria, muito pouco cartesiana. E para não se cair em um absoluto relativismo que em nada contribuiria para a compreensão e ordenação da vida em sociedade, parece essencial a eleição de um norte ético no exercício argumentativo, sempre sujeito a controles de sua coerência e universalidade.
(25)RAWLS, John. Justiça e democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 202.
(26)Já conforme Chaïm Perelman (Éthique cit., nota 7 supra, p. 59 e 67), justamente por trabalhar com a teoria da argumentação, que não depende, necessariamente, de uma eleição ética de valores pretensamente universais, mas, sim, do melhor desenvolvimento argumentativo de convencimento frente a dado auditório, não seria possível imaginar apenas "um único sistema de justiça", uma vez que cada qual decorreria "de um ou de vários valores", e estes, como se sabem, são múltiplos, de modo que "um sistema normativo, seja ele qual for, contém sempre um elemento arbitrário, o valor afirmado por seus princípios fundamentais que, eles, não são justificáveis. Essa última arbitrariedade é logicamente impossível de evitá-la. A única pretensão que se pode, com todo o direito, alegar consistiria na eliminação de toda arbitrariedade que não seja a implicada pela afirmação dos valores que se encontram na base do sistema".
(27)Vide Débora Regina Pastana (Justiça cit., nota 7 supra, p. 13-250). Segundo a autora, "no campo jurídico", "embora o discurso corrente seja o da democratização do Judiciário, o que se observa é o crescente número de juízes cada vez mais rigoroso na aplicação das leis penais, que, por sua vez, são cada vez mais drásticas. Muitos até mesmo se ressentem de não poderem quebrar a promessa liberal de segurança jurídica, para atender às expectativas da sociedade amedrontada" (p. 152-153). Ao analisar o garantismo penal (p. 143-146), para o qual também não economiza críticas, uma vez que, de acordo com a autora, seus adeptos, "ao defenderem a legalidade posta, afirmando a importância da interpretação de toda e qualquer lei conforme a Constituição (texto legal que reúne as garantias individuais do cidadão), continuam a operar ante as utopias liberais contidas nas normas" - no que se poderia contra-argumentar no sentido de que não há opção fora do direito, posto que ele é "a disciplina da convivência por excelência" (TELLES Jr. Goffredo. Iniciação na ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 381) -, sustenta que "o movimento garantista, dentro da ciência penal, pode ser comparado a uma reivindicação até certo ponto inócua de setores menos conservadores do campo jurídico. Enquanto atitude ético-política que centra o discurso jurídico na reivindicação de direitos, de liberdades e de garantias; tal movimento preocupa-se mais em alardear suas convicções sem, contudo, realizá-las". "Por tratar-se de um discurso pouco combativo, acaba por reduzir a crítica ao sistema penal, retificando mais uma vez a norma e abafando movimentos genuinamente contra-hegemônicos. Tudo a crer que de boas intenções o campo jurídico também está cheio. Apesar da defesa constante da obediência aos princípios garantidores, isto é, aqueles que, em tese, resguardariam o cidadão das arbitrariedades estatais, a prática vigente do sistema penal convive, por exemplo, com prisões precárias e superlotadas, cuja clientela é quase exclusivamente composta por pobres". Conforme, ainda, a autora, agora no seu Ensino Jurídico no Brasil (nota 19 supra, p. 104), "no Brasil impera uma cultura jurídica cínica que não leva a sério a garantia dos direitos, uma vez que em largos períodos conviveu ou foi cúmplice de maciças violações de direitos constitucionalmente consagrados".
(28)RIBEIRO, Ivan César; FERRÃO, Brisa Lopes de Mello. Coronéis cit., nota 4 supra, p. 12.
(29)DWORKIN, Ronald. Justice cit., nota 14 supra, p. 43.
(30)BOBBIO, Norberto. L'età dei Diritti. Roma: Giulio Einaudi, 1990. Trad. port. de Carlos Nelson Coutinho: A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 43.
(31)SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Fundamentos da adequação social em direito penal. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 23. Nas palavras do autor, "atualmente, a teoria tem se afastado da práxis, mostrando-se, por vezes, estéril e abstrata". Esse fenômeno, se está mesmo a indicar uma aproximação do raciocínio jurídico a "um raciocínio teórico que conclui pela verdade ou pela probabilidade de uma conclusão ou, ao menos, pelo fato de esta poder ser corretamente inferida a partir das premissas", nos termos defendidos por Chaïm Perelman (Éthique cit., nota 7 supra, p. 280), implica que a dogmática jurídica está se afastando da natureza mesma do direito, uma vez que este se constitui como a disciplina do pensamento prático por excelência, ainda conforme Chaïm Perelman (Éthique cit., nota 7 supra, p. 284). Isso porque o raciocínio prático, "por recorrer a técnicas da argumentação (Perelman e Olbrechts-Tyteca [32]), implica um poder de decisão (Cohen [33], Kattsoff [32]), a liberdade de quem julga. Sua meta é mostrar, conforme o caso, que a decisão não é arbitrária, ilegal, imoral ou inoportuna, mas é motivada pelas razões indicadas" (p. 280). Nesse sentido, "se reconhecermos a especificidade do raciocínio prático, admitiremos sem dificuldade a insuficiência dos modelos extraídos do raciocínio teórico. Situaremos então o raciocínio prático na perspectiva que lhe convém, a de um pensamento intimamente vinculado à ação, que visa à coexistência pacífica de uma pluralidade de seres livres, porém razoáveis" (p. 284), tal qual nos parece ser a missão do direito; de outro lado, se a dogmática penal estiver consciente de que sua disciplina é eminentemente argumentativa e que, portanto, seu raciocínio deve ser o prático, mas não sendo "inteiramente arbitrárias" as decisões a serem tomadas, pois devem estar elas sustentadas por uma ordem de valores (p. 281), parece importante que, na órbita penal, valham-se os juízes de toda uma tradição iluminista que passou a atribuir dignidade ao homem, limitando e regulando, assim, o uso do monopólio da violência por parte do Estado. É nesse sentido que também se critica, logo a seguir, o afastamento da práxis penal em relação à dogmática (teoria do direito penal, mas que é estruturada, evidentemente, sob um raciocínio argumentativo, portanto prático, e não meramente lógico-jurídico).
(32)(HASSEMER, Winfried. Rechtsphilosophie, Rechtswissenschaft, Rechtspolitik - am Beispiel des Strafrechts. In: NEUMANN, Ulfrid [Hrsg.]. Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie - ARSP. 1991. S. 130-143. Trad. port. de Felipe Rhenius Nitzke, rev. por Carlos Eduardo de Oliveira Vasconcelos: Filosofia do direito, ciência do direito e política do direito no caso do direito penal. In: VASCONCELOS, Carlos Eduardo de Oliveira [Org.]. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008. p. 32). Não parece ser desnecessário frisar, nesse sentido, que a atuação do "juiz penal de hoje" inclinada a uma suposta "sensatez" não está a significar que sua conduta estaria calcada no "diagnóstico de que a sociedade brasileira é injusta e a Justiça Criminal, muitas vezes, é exercida em favor dessa injustiça" (SINHORETTO, Jacqueline. Ir aonde o povo está: etnografia de uma reforma da justiça. Tese [Doutorado] - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, São Paulo, 2007, p. 16-17). Na verdade, como visto acima, muito mais provável deparar-se com "soluções 'sensatas'" do tipo que se aferram a lugares-comuns já há muito infirmados por diversos estudos de cunho, estes sim, científico (nota 16 supra). E na mesma linha, acerca da vulgarização do discurso jurídico na práxis pelos operadores do direito, vide o documentário Justiça (direção de Maria Augusta Ramos, produção Luis Vidal, Niek Koppen, Jan de Grinten e Nerée Van Der Grinten, 100 minutos), no qual, "coincidentemente", observa-se o mesmo "basta" sendo utilizado em um culto religioso (1:24'44'' - 1:26'30'') - como um brado contra o sofrimento dos fiéis - e em um discurso em razão da posse de uma nova desembargadora (1:31'44'' - 1:32'38'') - neste como apelo para o recrudescimento da legislação penal. Também nesse sentido, ainda, Luís Greco (Quanto vale a vida de um brasileiro? Um apelo à comissão de reforma do Código Penal. Boletim IBCCRIM, n. 236 [2012], p. 3-5), ao sustentar a ideia de que a vida do brasileiro parece valer menos do que a de cidadãos de outras nacionalidades, ante o rigorismo das penas, lança o seguinte comentário em nota de rodapé no início de seu texto: "enquanto escrevo esse artigo (dia 8 de junho de 2012), vejo o que Nucci publica em seu perfil de rede social: como a expectativa de vida do brasileiro aumentou desde 1940, seria justificado elevar o limite máximo de 30 anos (art. 75 do CP)! Vejo que mais de 700 pessoas já 'curtiram' o disparate. Isso faz com que me pergunte se sequer há sentido em concluir o presente artigo. Não só o legislador, mas ao que parece também a academia unida à vox populi manifesta justamente a atitude que almejo denunciar no presente texto: como o brasileiro hoje vive mais, a sua vida vale ainda menos! Prossigo, porém, fortalecido pela esperança de que meu pequeno apelo seja lido também como um repúdio a essa mais recente degeneração de nossa ciência do direito penal, que, vulgarizando-se em blogs e redes sociais, troca seu compromisso com a verdade pelo prato de lentilha dos aplausos irrefletidos".
(33)HASSEMER, Winfried. Rechtsphilosophie cit., nota 32 supra, p. 33.
(34)Acerca da teoria do garantismo penal, vide: FERRAJOLI, Luigi. Diritto e ragione: teoria del garantismo penale. Bari: Laterza, 2000. Trad. port. de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes: Direito e razão. 2. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 37-881.
(35)HASSEMER, Winfried. Rechtsphilosophie cit., nota 32 supra, p. 33.
(36)HASSEMER, Winfried. Rechtsphilosophie cit., nota 32 supra, p. 32.
(37)PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Traité cit., nota 13 supra, p. 23-24.
(38)PRADO, Lídia Reis de Almeida. O juiz cit., nota 8 supra, p. 50-51.
(39)PRADO, Lídia Reis de Almeida. O juiz cit., nota 8 supra, p. 106.
(40)Nesse sentido: "para além dos benefícios evidentes que resultam da possibilidade de pagar os serviços de um advogado influente e conceituado aos olhos do próprio tribunal - ao invés de se sujeitarem a uma defesa oficiosa, a muitos níveis pouco estimulantes para o próprio defensor -, os agentes de colarinho-branco, que partilham com o juiz o meio social, econômico e cultural onde se movem, aproveitam daquilo a que se tem chamado uma empatia do tribunal para com o agressor, a sua família, as pressões que o levaram a cometer o ilícito... Ao contrário do que normalmente sucede, o julgador e o julgado falam a mesma linguagem" (SANTOS, Cláudia Maria Cruz. O crime cit., nota 5 supra, p. 261). Também conforme Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade (Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 1997. p. 542-543), "os indivíduos e os grupos sociais interagem em tribunal em condições de insuperável desigualdade. Os arguidos das classes superiores e aqueles que usualmente com eles sustentam a mesma construção da realidade (as 'suas' testemunhas, os 'seus' declarantes, etc.) encontram no tribunal um universo simbólico de linguagem, gestos, estilos de vida, tiques, temas de conversas nos intervalos das sessões, que é o seu próprio universo. As pessoas concretas que desempenham os papéis de juiz ou de Ministério Público são personagens de seu quotidiano, do seu bairro, dos seus restaurantes, das suas festas, dos seus círculos, os pais dos amigos dos seus filhos. Já tudo é diferente em relação aos arguidos das classes inferiores. É, desde logo, a 'fachada' (Goffman) do sistema judicial que os espanta e os coloca fora do seu mundo. Depois, é a necessidade de ter de traduzir tudo para a linguagem e os gestos 'próprios' da gente do tribunal. Ora as dificuldades, se não mesmo a impossibilidade, de o fazerem com sucesso reduzem a sua intervenção e a sua credibilidade, pois os seus silêncios, as suas tergiversações, as suas inconsistências e hiatos, conjugados com eventuais antecedentes criminais, podem valer como a prova, 'acima de toda a dúvida razoável', de que a sua versão não tem fundamento e não é verdade. Em processo, a inverdade de um implica normalmente a verdade dos outros". Do mesmo modo que, ainda que as referências sejam óbvias demais, parece ser mais fácil ao julgador colocar-se no lugar do consumir, ao julgar causas relativas à relação de consumo, pois ele é também um consumidor, ou de toda a sociedade prejudicada por uma lesão ao meio ambiente, pois a preservação ambiental é tida em toda a sociedade como um valor importante, sendo louvado quem defende sua proteção. Enquanto isso, defensores das garantias processual-penais e dos "direitos humanos para presos" - na verdade, para todos, evidentemente -, e não apenas para os "humanos direitos", são tidos como lenientes com a criminalidade e são, não raro, convidados para levar para casa o "coitadinho do adolescente infrator ou do réu estuprador". Sob tal ótica, Teresa Pires do Rio Caldeira (Direitos humanos ou "privilégios de bandidos"? Desventuras da democratização brasileira. Novos Estudos CEBRAP, n. 30 [1991], p. 165-169) sustenta ser "fácil reivindicar direitos coletivos, mas não direitos individuais", uma vez que "enquanto a maioria da população considera essenciais os direitos à saúde, à educação, à previdência social, etc., tende a ver como luxo os direitos de expressão, de participação em associações, de liberdade individual. (...) Foi exatamente com base na associação de direitos a privilégios que representantes da direita construíram sua oposição à defesa dos direitos humanos para prisioneiros comuns". Nessa linha, a autora aponta, ainda, a diferença de como a população enxergava a defesa em prol dos militantes políticos no regime militar (oriundos, boa parte, de camadas médias e altas da sociedade) - ou seja, com simpatia, até porque defendiam "direitos políticos de toda a comunidade nacional suspensos pelo regime militar" - e como passou a ver a campanha por direitos humanos para presos comuns (em sua esmagadora maioria oriundos das classes baixas) - ou seja, com toda uma carga de preconceitos e discriminação. As diferenças básicas, no sentir da autora - com a qual se concorda -, "dizem respeito à condição de cidadania dos grupos para os quais se reivindicavam os direitos". Nessa linha, bastante interessante observar que aqueles que, não há muito tempo, ousaram garantir aos réus anônimos, principais "fregueses" da Justiça Penal, direitos e garantias constitucionais não passaram incólumes pela magistratura bandeirante. De acordo com Jacqueline Sinhoretto (Ir aonde cit., nota 32 supra, p. 16-27), "nos anos anteriores a 1985, houve a concentração de juízes de alçada com orientações filosóficas comuns na mesma câmara, possibilitando, de maneira inédita, a elaboração de acórdão com teses dissonantes do pensamento majoritário do direito penal brasileiro. Teses que até então produziam apenas votos vencidos nas demais câmaras, passaram a ser aceitas pela Quinta Câmara [do Tribunal de Alçada Criminal - TACRIM], possibilitando o início de uma jurisprudência dissonante no Judiciário Criminal paulista, ancorada num pensamento jurídico chamado garantismo. (...) Adauto Suannes, Alberto Silva Franco, Dyrceu Costa Lima, Edmeu Carmesini, Ercílio Cruz Sampaio e Ranulfo de Melo Freire (...) reuniam-se em torno do diagnóstico de que a sociedade brasileira é injusta e a Justiça Criminal, muitas vezes, é exercida em favor dessa injustiça. Disso decorria o compartilhamento de que o juiz, ao implementar cegamente os procedimentos processuais, torna-se instrumento cego da injustiça social. Por isso, para serem bons juízes precisavam contextualizar sua prática a uma realidade social injusta e desigual, precisavam incorporar à interpretação jurídica conhecimentos, posições e opiniões circulantes fora do ambiente forense". Conforme Alberto Silva Franco, em depoimento à pesquisa em questão, "essa câmara passou a colocar uma questão que até então não era objeto de consideração, isto é, de que o juiz não está preso ao direito positivo, mas está preso à Constituição. Portanto, pela primeira vez, uma câmara de um tribunal passava a decidir em função do que dizia a Constituição. (...) Sem aceitar a intermediação da lei positiva, quer dizer: toda vez que a lei positiva não batia com os ditames da Constituição, respeitava-se a Constituição e não a lei positiva". Em razão dessa defesa intransigente e universal - o que deveria ser pressuposto sempre que se falasse sobre o tema, mas vale ressaltar - dos direitos humanos, eram os juízes da famigerada Quinta Câmara do TACRIM hostilizados internamente, "'apelidados de tudo: de comunistas, de sobrinhos do Cardeal [Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, sob cujo bispado floresceu a Teologia da Libertação na Igreja Católica paulistana], de veados, de tudo que vocês pudessem imaginar... Então havia toda uma reação muito grande a essa postura' (Silva Franco)". Mas não se restringia a isso. "Inicialmente, os recursos não eram encaminhados a Brasília, como estratégia do Tribunal para não difundir as teses garantistas da Quinta Câmara". Dois dos juízes da Quinta Câmara do TACRIM, quando promovidos concomitantemente para desembargadores, Alberto Silva Franco e Adauto Suannes, solicitaram uma permuta, uma vez que Silva Franco intentava aposentar-se e tinha sido designado para uma câmara criminal, ao passo que Suannes tenciovada permanecer nessa última área, e havia sido designado para uma câmara cível. "'Pela primeira vez na história do Tribunal - pela primeira vez na história do Tribunal! - essa permuta foi negada, sob o fundamento de que não atendia ao interesse público' (Silva Franco)".
(41)O fenômeno não se resume a uma simples divisão de classes - ainda que tal seja de grande peso - e tampouco se restringe à comparação entre casos judiciários diversos. Pode ser observado, ao que parece sugerir a prática judiciária, entre acusados de um mesmo ou parecido estrato social - tendo como discrimen, de outro lado, suas projeções públicas e políticas, por exemplo - e dentro de um mesmo julgamento. Tratando da volubilidade do julgador em sua coluna no jornal Folha de S. Paulo de 06.10.2012 (Uma questão de ceticismo, p. A2), Hélio Schwartsman sustenta que "o problema com Lewandowski é que ele aplica diferentes níveis de ceticismo ao longo do mesmo julgamento [Ação Penal 470]. Se é verdade que não chegou a ser um crédulo new age quando os réus eram figuras menores, ele parece adotar uma exigência quase solipsista quando se discute a situação dos protagonistas. É justamente esse ruído que chama a atenção". Mas voltando à criminalidade ordinária, protagonizada notadamente pelos excluídos, tem-se que são bastante comuns na prática judiciária, conforme observa Débora Regina Pastana (Justiça cit., nota 7 supra, p. 114-118), a realização de julgamentos morais pelos juízes e também a "avaliação da personalidade do acusado pelo juiz que preside o processo", amparando-se em um "senso comum que o faz supor que podemos compreender uma outra pessoa por analogia ao nosso comportamento", sem qualquer "conhecimento especializado" para tanto. Pode-se acrescentar, sem que se demonstre a legitimidade, com vista à Constituição (garantidora do pluralismo, é de se destacar), de receber dado sujeito uma punição mais severa em razão de meramente ostentar tal ou qual traço de personalidade. Conclui a autora, com razão, que "não há como não concluir que a consideração da personalidade do acusado pelo juiz seja pela desinformação de natureza psicológica, seja pela distância mantida em relação ao homem comum do povo, explicita também o abismo que existe entre cidadania e Justiça Penal no Brasil".
(42)Conforme Winfried Hassemer (Einführung in die Grundlagen des Strafrechts. München: Verlag C. H. Beck, 1990. Trad. port. de Pablo Rodrigo Alflen da Silva: Introdução aos fundamentos do direito penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005. p. 128), "os conceitos 'seletividade', 'seletivo' e 'seleção', apesar de sua relação fatal com os crimes violentos do nacional-socialismo, infelizmente se estabelecem na nova sociologia criminal, que influenciou inclusive a linguagem empregada pelos americanos e, por isso, aqui também são utilizadas. Eles geralmente se referem aos efeitos das normas jurídicas e sociais, ao controle social, à persecução das condutas desviantes e significam que esses processos ocorrem de modo desigual, que as chances de tornar-se uma vítima de tal controle são maiores em relação aos membros das classes sociais mais baixas do que em relação aos outros, que as normas somente de modo aparente valem para o 'quem' abstrato com que começa a maior parte dos tipos da parte especial do StGB, que em sua realização, ao contrário, elas 'selecionam' alguns e deixam outros sem ser molestados (embora eles realmente também devessem ser aplicadas a estes). Pode-se ver que atrás desses conceitos há um programa científico e político-científico - circunstância que seguramente é responsável pelo fato de esses conceitos serem imprecisos (e que provavelmente devem continuar assim)".
(43)Conforme Juarez Cirino dos Santos (30 anos de vigiar e punir [Foucault]. Trabalho apresentado no 11º Seminário Internacional do IBCCRIM (4 a 7 de outubro de 2005). São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2012, p. 6). Quanto à "imprensa discreta" não se pode invariavelmente confundir com uma ausência de sensacionalismo (o qual é normalmente dirigido à criminalidade das classes oprimidas). Na verdade, ainda quando há certa divulgação até inflamada de determinado caso envolvendo um delito de colarinho-branco, não raro se verifica claramente a insistência em se diferenciar a "maldade" do "marginal" em relação ao "desvio" do político ou do executivo, propagando a ideia de que o tratamento dirigido a um (prisão) não seria adequado (justo?) ao outro. Nesse sentido, ainda que louvável em certo aspecto (crítica ao encarceramento, às condições das prisões brasileiras, à falácia de que o cárcere reeduca), a posição, por exemplo, do jornal Folha de S. Paulo, recentemente reforçada em seu editorial Para quem Precisa, 25.10.2012, p. A2, no sentido de que "penas de prisão deveriam, em tese, caber a criminosos violentos; para os demais, como no mensalão, conviriam severas penas alternativas", ao mesmo tempo que reforça o anseio pela neutralização cada vez mais eficiente daqueles que comentem crimes envolvendo "violência física ou grave ameaça", ou seja, membros das classes oprimidas ("delinquentes violentos devem ser submetidos a longuíssima privação de liberdade, e a progressão dessas penas deveria ser até mais difícil do que é"), ignora as consequências absolutamente deletérias (e plenamente conscientes) de certas condutas dolosas praticadas por políticos e executivos, por exemplo, e que implicam, não raramente e em uma relação de causa e efeito bastante palpável até, o sofrimento e a morte de um sem-número de indivíduos (muitas vezes daquelas mesmas classes para quem a prisão deve permanecer destinada). Nessa linha, Cláudia Maria Cruz Santos (O crime cit., nota 5 supra, p. 211) sustenta que "a crença no merecimento, por parte dos white-collars, de um tratamento menos severo, em virtude da inexistência de violência e da desnecessidade de uma intervenção ressocializadora, nos parece merecedora de algumas críticas. Quanto ao primeiro aspecto - a inexistência de violência -, recordemos o denominado caso Ford Pinto. Os engenheiros da Ford descobriram que um determinado modelo da marca tinha um problema no depósito de combustível em virtude do qual, quando houvesse uma colisão a determinada velocidade, o carro explodiria em chamas. Foi encomendado um estudo relativo aos custos e benefícios para decidir qual a conduta a adoptar, e a Ford considerou que, tendo em conta a venda estimada de muitos milhares de carros, 'não valia a pena fazer uma alteração de um dólar por carro para salvar várias centenas de vidas, e durante vários anos continuou a fabricar e a vender um carro que sabia poder tornar-se uma incineradora rolante' (Cf. FATTAH, Ezzat A. Criminology: past, present and future. New York: St. Markin's Press, 1997. p. 80-81). Ora, ainda que se considere não existir, em casos como este, qualquer violência na execução, não serão os resultados suficientemente violentos, em si mesmos considerados, para afastar a pretensa menor gravidade da conduta? Mais uma vez, parece-nos que a diversidade de que o crime de colarinho-branco se reveste impõe que 'se separe o trigo do joio': se há casos de menor necessidade punitiva por força da menor gravidade da infracção, outros há de natureza radicalmente diversa. O mesmo se diga quanto à menor carência de ressocialização, que deveria justificar a menor severidade da pena, por desnecessária no que respeita às exigências de prevenção especial. Ainda que se acredite no potencial efeito socializador associado ao cumprimento da pena de prisão, vários estudos têm demonstrado que os white-collars nem sempre são, como se julgava, delinquentes não reincidentes, pelo que talvez se possa questionar a necessidade de algum tipo de intervenção destinada a incentivar o cumprimento das normas. Para além disso, não pode esquecer-se o imperativo de respeito pela prevenção geral positiva ou de integração, cujo patamar mínimo, em casos de danosidade social muito elevada, pode exigir um sancionamento significativo".
(44)Conforme Edwin H. Sutherland (Principles of criminology. Chicago: J. B. Lippincott, 1939. Trad. port. de Asdrúbal Mendes Gonçalves: Princípios de criminologia. São Paulo: Martins, 1949. p. 16), "as mais intrincadas maquinações dos homens de profissões liberais e de negócios podem ater-se à lei tal como é interpretada, mas ser idênticas, na lógica e nos efeitos, ao comportamento criminoso que resulta em prisão. Essas práticas, ainda que não se transforme em condenação pública como crimes, fazem parte da cultura criminosa". Mas, conforme Débora Regina Pastana (Justiça cit., nota 7 supra, p. 151), "os focos usuais da nossa Justiça Penal ainda são os flagrantes do estigma social, aqueles que põem em risco a ordem classista e o distanciamento seguro".
(45)Para além da chamada empatia do tribunal para com certos clientes, é preciso destacar também a "anormalidade com que os juízes encaram a necessidade de apreciação de tais casos. As suas especificidades e complexidade tornam-nos objecto de um julgamento muito mais cuidadoso e detalhado do que o do crime comum, totalmente rotinizado. Ora, um tal cuidado evita condenações apressadas e leva à prevalência de qualquer dúvida capaz de inocentar o arguido. A 'novidade' acaba por gerar, assim, uma maior relutância quanto à condenação", conforme destaca Cláudia Maria Cruz Santos (O crime cit., nota 5supra, p. 261). Mas também não se pode perder de vista, de outro lado, e ainda conforme a citada autora, que há a "complexidade associada ao crime de colarinho-branco, que muito dificulta a condenação. Como bem nota Braithwaite, essa complexidade manifesta-se a vários níveis: a complexidade dos registros contabilísticos; a da própria lei; a complexidade das organizações implicadas na infracção; a da disputa científica em torno dessas questões; a complexidade inerente ao carácter transnacional de muitos desses crimes. Todos esses elementos são explorados pelo arguido de forma intencional e no seu próprio interesse, bem como pelos competentes advogados de cujos serviços pode usufruir. O que, em conjunto, tornará a prova da culpa para além da dúvida razoável uma tarefa efectivamente muito espinhosa" (p. 261-262).
(46)Partindo da constatação de que a sociedade brasileira é caracterizada por uma profunda desigualdade socioeconômica, a qual nos remete à própria formação do país por meio das chamadas sesmarias, Keith S. Rosenn (Brazil's legal culture: the jeito revisited. Florida International Law Journal, n. 1 [1984], p. 15-16) aponta o reflexo disso também no mundo jurídico. "Brazil has always had one law for its elite and a very different law for is masses. Despite the constitutional rhetoric of equality, in Brazil, as in much of the world, one's status and connections are critical variable governing actual application of the law. Particularly in dealings with the bureaucracy and the police, the rules applied to the upper and middle classes differ from those applied to the lower class. Vestiges of this class discrimination can still be found in formal legal structure, such as the requirement that educated persons be detained in special jails". Para Sérgio Salomão Shecaira (Criminologia cit., nota 3 supra, p. 202), reportando-se às análises de Edwin H. Sutherland acerca dos crimes do colarinho-branco, "os legisladores admiram e respeitam os homens de negócios, não sendo concebível tratá-los como delinquentes", sendo claro exemplo disso a prisão especial. Ainda sobre o tema, vide Roberto Luiz Corcioli Filho (Prisão especial. São Paulo, 2012. Blog Justiça e Mais [2012]. Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2012).
(47)Acerca do discurso praticamente homogêneo da Lei e da Ordem (e sobre tal movimento político-criminal vide, por todos, Alberto Silva Franco [Crimes hediondos. 6. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 80-89]) que se valem promotores de justiça e juízes - que muitas vezes se fiam em "aforismo[s] encontradiço[s] no senso comum da mídia policial" - e de suas práticas seletivas na administração desigual da Justiça, vide Oscar Mellim Filho (Criminalização e seleção no sistema judiciário penal. São Paulo: IBCCRIM, 2010. p. 137-247). Segundo o autor, "no sopesar os elementos de prova que servem de base à condenação ou absolvição dos réus, observa-se o uso de critérios diferenciados não apenas conforme a natureza dos delitos, mas principalmente o perfil de seus agentes. Para a condenação de suspeito da prática de crime de furto, por exemplo, basta que, uma vez apreendido o produto em seu poder, sua explicação sobre a origem do objeto não seja considerada satisfatória pelo juiz, a seu exclusivo critério valorativo". Continuando, para o autor, "a assimetria marca igualmente o exame das provas quando são diversas as infrações penais, normalmente atribuídas a pessoas com perfil diferenciado". Em seguida, exemplifica tal fenômeno com a menção ao julgamento de uma ação penal relativa à sonegação fiscal, na qual os réus foram absolvidos por entender o juiz que "as relações no mundo dos negócios exigem rapidez", de modo que não seria exigível dos réus que tivessem investigado se o fornecedor que os possibilitou o creditamento de ICMS era idôneo - ou seja, se estava regular perante o Fisco e havia recolhido o tributo ao transacionar com os réus. Assim, questiona justamente o autor se, na verdade, "tal circunstância não lhes deveria pesar negativamente, assim como a explicação insuficiente dada pelo suspeito da prática do furto com quem foi apreendido o produto da subtração" (p. 198-199). Na mesma linha, observa Mariana Quezado Grosner (A seletividade do sistema penal na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: o trancamento da criminalização secundária por decisões em habeas corpus. São Paulo: IBCCRIM, 2008. p. 166) que "nos acórdãos concessivos [de habeas corpus], as decisões pelo trancamento ocorrem, mais frequentemente, nos crimes econômicos, seguidos pelos crimes contra a administração pública (...). Fica patente a contribuição que o STJ dá para a seletividade do sistema penal menos orientado à classe dominante e que ressai nas estatísticas criminais, formando o senso comum da população sobre criminalidade".
(48)Para Marcus Alan de Melo Gomes (Mídia, poder e delinquência. Boletim IBCCRIM, n. 238 [2012], p. 5), por exemplo, "a violência nos meios de comunicação conforma o mundo do seu público. Em muitas pessoas, essa visão distorcida pela mídia faz nascer um sentimento de insegurança, a sensação de que, a qualquer momento, seremos nós as próximas 'vítimas'. (...) Aos criminosos, a punição severa e exemplar, a prisão perpétua, a pena de morte, se possível. Qualquer meio justifica o fim retributivo. O medo move a massa, que não quer justiça (de que adianta a justiça?), quer proteção (vingança inconsciente?). (...) O discurso retributivista vai, assim, sendo alimentado pela violência sensacionalista nos meios de comunicação. E a repressão penal continua a ser usada como o principal instrumento desse discurso que elege o inimigo e o estigmatiza". Segundo Débora Regina Pastana (Justiça cit., nota 7 supra, p. 152), "esse sentimento hegemonicamente difundido por meio da cultura do medo, que leva a sociedade a legitimar as mais diversas atuações autoritárias no combate à criminalidade, também se faz presente entre os operadores do direito".
(49)Nesse sentido, remete-se ao nosso Véu de Ignorância, Garantias Constitucionais e "o meu Filho" (Blog Justiça e Mais [2012]. Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2012).
(50)Conforme tratado por Teresa Pires do Rio Caldeira (Direitos cit., nota 40 supra, p. 162-174).
(51)Aqui, vale destacar que, de acordo com Cristina Zackseski (Sistema penal: política criminal e outras políticas. Boletim IBCCRIM, n. 172 [2007], p. 7), o sentido corriqueiramente "atribuído à palavra impunidade em nada se aproxima da superação dos obstáculos que impedem a criminalização de condutas praticadas por agentes que não participem do estereótipo de criminoso presente em nosso contexto cultural, como é o caso dos criminosos do colarinho-branco, que permanecem sempre à margem do sistema (e não da sociedade, como no caso dos crimes convencionais)".
(52)Nesse sentido, por exemplo, não se observa na prática forense, na verdade, um amplo respeito a garantias constitucionais em processos-crime envolvendo sujeitos provenientes das classes oprimidas, notadamente na primeira e segunda instâncias, sendo exemplo disso o fato de ter sido necessária a edição recente de uma súmula pelo Superior Tribunal de Justiça (nº 492, de 13.08.2012) para dizer o óbvio: "o ato infracional análogo ao tráfico de drogas, por si só, não conduz obrigatoriamente à imposição de medida socioeducativa de internação do adolescente".
(53)Sobre o tema: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. El enemigo en el derecho penal. Buenos Aires: Ediar, 2006. Trad. port. de Sérgio Lamarão: O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 11-192.
(54)Nesse sentido, Teresa Pires do Rio Caldeira (Direitos cit., nota 40 supra, p. 173), sustenta que "a sensação de segurança não é tanto uma função da ausência de crime quanto de distância social. Distância social significa manutenção de privilégios e de uma ordem excludente".
(55)Cf. Débora Regina Pastana (Justiça cit., nota 7 supra, p. 35), "o cidadão alienado, em vez de cobrar do seu governante posturas mais adequadas aos seus anseios e necessidades, cede ao consenso hegemônico, permitindo, muitas vezes, a adoção de medidas penais que só o prejudicam".
(56)Conforme Sérgio Salomão Shecaira (Criminologia cit., nota 3 supra, p. 201), explorando o pensamento de Edwin H. Sutherland, "o juízo que se faz dos grandes empresários, dos banqueiros poderosos o dos megaindustriais inclui um misto de medo e admiração". Justamente essa admiração pode estar a significar uma vontade de ser como eles, de usufruir dos mesmos privilégios, colher os frutos da esperteza sem ser apanhado pelo sistema de Justiça. E sem perspectiva de alcançar tal objetivo, resta mesmo invejá-los, desejando que alguns deles, vez ou outra, se deem mal a fim de serem aplacadas frustrações.
(57)SANTOS, Cláudia Maria Cruz. O crime cit., nota 5 supra, p. 257. De todo modo, parece possível notar que para o sentimento de impunidade pouco importa que a ausência de condenação decorra de uma aplicação inadequada do direito (a tal "maior relutância quanto à condenação", conforme citado na nota 45 supra), por exemplo, ou de uma observância rigorosa de direitos e garantias constitucionais. Esse último motivo certamente não se constitui como um obstáculo a se bradar contra a "impunidade dos corruptos". Não nos parece que seria diferente, para efeito do comentado sentimento de impunidade, se para os criminosos ordinários fossem em alto grau asseguradas as garantias constitucionais em seus julgamentos - ao invés de se observarem, por exemplo, falhas no trabalho policial de investigação. Mas que há certa consciência de que tal apenas ocorre geralmente em relação aos poderosos, e que se potencializa, assim, um sentimento de injustiça especialmente por aqueles que não os sejam, isso parece ser um dado não passível de ser negado.
(58)Vide: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
151: "normalmente nossa reação ao meio em que vivemos não é uma reação de defesa. A vida íntima do brasileiro nem é bastante coesa, nem bastante disciplinada, para envolver e dominar toda a sua personalidade, integrando-a, como peça consciente, no conjunto social. Ele é livre, pois, para se abandonar a todo o repertório de ideias, gestos e formas que encontre em seu caminho, assimilando-os frequentemente sem maiores dificuldades". Acerca da "enorme incapacidade da sociedade [brasileira] em se mobilizar autonomamente para fiscalizar o Estado e identificar o mau funcionamento de suas instituições". Vide: PASTANA, Débora Regina. Justiça cit., nota 7 supra, p. 39-40.
(59)Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli (Manual cit., nota 2 supra, p. 72-73), ao tratarem do fenômeno de "criminalização de pessoas ou de grupos contestadores pertencentes às classes média e alta", sustentam que "o sistema não tem dúvida em criminalizar pessoas dos próprios setores hegemônicos, para que estes sejam mantidos e reafirmados no seu rol, e não desenvolvam condutas prejudiciais à hegemonia dos grupos a que pertencem". Nosso ponto de vista não se encaixa, propriamente, nessa concepção, uma vez que os sonegadores desatentos que são pegos pelo sistema criminal, ou os corruptos que deixam de observar certas cautelas e andam com dinheiro sob a roupa íntima, também sendo apanhados, não podem ser tidos como contestadores. Na verdade, fazem, sem o devido refinamento (ou cautela, ou por um meio um pouco diverso), o mesmo que certos grandes e ilustres homens de negócio praticam valendo-se de teses jurídicas ou de outras estratégias de negócio. Porém, trata-se, sob tal ou qual visão, certamente de um mesmo fenômeno de evitar "condutas prejudiciais à hegemonia dos grupos a que pertencem".
(60)BOURDIEU, Pierre. Le pouvoir cit., nota 21 supra, p. 7-8.
(61)Conforme Sérgio Salomão Shecaira (Criminologia cit., nota 3 supra, p. 337), "o crescente volume de criminalidade levou a um aprofundamento das posturas estatais relativas a ela. Em vez de a polícia suspeitar de certos indivíduos, passou a suspeitar de categorias sociais. A evocação de Casablanca, 'prenda os suspeitos de sempre', está sendo transformada em 'prenda as categorias de sempre'".
(62)Em certo sentido sobre o fenômeno, remete-se à imprescindível análise de Maria Lúcia Karam (A esquerda punitiva. Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, n. 1 [1996], p. 79-92). Ainda sobre o tema, Cláudia Maria Cruz Santos (O crime cit., nota 5 supra, p. 263) observa "a possibilidade de alguns juízes estarem cientes das críticas habituais ao favorecimento dos poderosos, sendo tentados a adoptar o comportamento inverso, endurecendo posições e punindo mais severamente. Esta parece-nos, todavia, mesmo entre o curto número de white-collars que chegam a julgamento, uma ocorrência marginal. Mas não podemos deixar de considerar o perigo concomitante de os aplicadores da justiça reagirem à alegação da inércia em face de algumas condutas elegendo bodes expiatórios, para assim se sossegarem as consciências".
(63)GOMES, Marcus Alan de Melo. Mídia cit., nota 48 supra, p. 4-5.
(64)Marilena Chauí no debate A Ascensão cit. (nota 21 supra).
(65)PERELMAN, Chaïm. Éthique cit., nota 7 supra, p. 570.
(66)Cf. GOMES, Marcus Alan de Melo. Mídia cit., nota 48 supra, p. 5.
(67)PERELMAN, Chaïm. Éthique cit., nota 7 supra, p. 570.
(68)PERELMAN, Chaïm. Éthique cit., nota 7 supra, p. 566.
(69)Ao menos não enquanto o inimigo é "o 'outro', no sentido lacaniano; amanhã, quem sabe, seremos nós. Aí, talvez, a mídia se disponha a tratar a delinquência não como uma mercadoria, para criar espetáculos de apelo à audiência, na qual há bandidos e mocinhos, protagonistas e coadjuvantes. Aí, talvez, se compreenda que a intervenção penal não é a solução para as mazelas sociais", conforme Marcus Alan de Melo Gomes (Mídia cit., nota 48 supra, p. 5). Conforme Eros Grau, em voto condutor proferido no HC 95.009/SP (Supremo Tribunal Federal, Tribunal Pleno, j. 06.11.08), "a regra do Estado de direto tem sido, no entanto, reiteradamente excepcionada entre nós. A classe média, sobretudo a classe média, já não a deseja senão para o irmão, o amigo, o parente de cada um. O individualismo que domina, o egoísmo que preside as nossas relações com o outro não quer mais saber da lei e da Justiça, que 'só servem para soltar quem a polícia prende (...)'. O trágico que se manifesta em nosso cotidiano está em que a exceção aqui se manifesta não como algo momentâneo, singular - como que a confirmar a regra -, mas permanente. O seu caráter temporário é diluído e ela se estende no tempo. Esse é o drama que suportamos. Agora somos mais originais, pois é a própria sociedade que clama, de quando em quando, pela suspensão da ordem constitucional. Somos tão originais que dispensamos quaisquer déspotas para nos tornarmos presa do pior dos autoritarismos, o que decorre da falta de leis e de Justiça. O estado de sítio instala-se entre nós no instante em que recusamos aos que não sejam irmãos, amigos ou parentes o direito de defesa, combatendo-os - aqui uso palavras de Paulo Arantes - como se fossem 'parcelas-fora-da-Constituição'". No mesmo sentido já me expressei em Véu cit. (nota 49 supra).
(70)Nesse sentido, tem-se, conforme José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 45), "que a constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a Lei Suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas".
(71)Na referência clássica à permissão da analogia como fonte de criação do direito penal na Alemanha nazista (introduzida pela reforma de 28 de junho de 1935 do StGB).
(72)FERRAJOLI, Luigi. Diritto cit., nota 34 supra, p. 534.
(73)HC 95.009/SP cit. (nota 69 supra).
(74)SANTOS, Cláudia Maria Cruz. O crime cit., nota 5 supra, p. 257. Porém, como também bem destacou a autora, "as dúvidas que assolam alguns criminólogos não parecem, todavia, encontrar eco na percepção pública do funcionamento da justiça. A criminologia estrutural apresentou dados que comprovam o forte sentimento experimentado pelo cidadão comum quanto à desigualdade da repressão penal e salientou ser entre os membros das classes mais desfavorecidas - a denominada surplus population - que a consciência da injustiça é mais aguda".
(75)Nesse sentido, conforme Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli (Manual cit., nota 2 supra, p. 59-60, 55-56), "se cada cidadão fizesse um rápido exame de consciência, comprovaria que várias vezes em sua vida infringiu as normas penais: não devolveu o livro emprestado, levou a toalha de um hotel, apropriou-se de um objeto perdido, etc. Em sã consciência, cada um de nós tem um 'volumoso prontuário'. Os juízes incrementam-no diariamente, ao subscrever falsamente declarações como aquelas prestadas em sua presença e nas quais jamais estão presentes. Os serventuários da Justiça certificam diariamente várias dessas falsidades ideológicas. Poder-se-á afirmar que tais ações não são delitos ou que são delitos levíssimos. No entanto, há numerosíssimas condenações penais por fatos análogos e ainda mais insignificantes: furto de uma xícara de café barata por parte de um servente da limpeza; apropriação de duas latas de pêssegos por um empregado; negativa do motorista de ônibus urbano a deter-se em uma parada para que desça um passageiro; furto de uma folha de um talonário de cheques inútil, referente a uma conta encerrada, etc. (...) Chama também a atenção o fato de que na grande maioria dos casos os que são chamados de 'delinquentes' pertencem aos setores sociais de menores recursos. Em geral, é bastante óbvio que quase todas as prisões do mundo estão povoadas por pobres. Isso indica que há um processo de seleção das pessoas às quais se qualifica como 'delinquentes' e não, como se pretende, um mero processo de seleção das condutas ou ações qualificadas como tais".
(76)PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Traité cit., nota 13 supra, p. 67. Em recente editorial do jornal Folha de S. Paulo (30.09.2012, p. A2), comentou-se acerca da decisão do Conselho Nacional de Justiça que determinou a realização de novos exames orais para os candidatos reprovados em tal fase do concurso nº 183 de ingresso na magistratura bandeirante. O ponto central de discussão girou em torno da chamada "entrevista reservada" realizada com os candidatos, na qual se perguntavam coisas como "qual a sua religião? Concorda com a decisão do Supremo Tribunal Federal em relação à interrupção da gravidez de fetos anencéfalos? Como é a sua família?". Segundo o editorial, "alguns desembargadores defenderam as audiências como meio de conhecer o perfil dos postulantes e saber se eles, para além da capacidade técnica, têm traços condizentes com a figura de um juiz. O objetivo seria evitar que na carreira ingressassem pessoas claramente parciais, por exemplo". Mas a questão que se coloca é justamente se existiria ser humano política e eticamente imparcial? Ora, uma coisa seria a tendência do sujeito sempre julgar em favor de um determinado grupo, outra, por exemplo, é a sua inclinação política por valores conservadores, liberais, sociais, dentre outros. Nesse sentido, conforme Eros Roberto Grau (O direito posto e o direito pressuposto. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 298), é importante lembrar "que todas as decisões jurídicas, porque jurídicas, são políticas; que o ato de julgar consubstancia uma experiência existencial". Conforme o autor, "o juiz deve manter-se em situação exterior ao conflito que é o objeto da lide a ser solucionada. Ele deve ser estranho ao conflito. Seus interesses não devem, sob maneira nenhuma, entrar em jogo no conflito que ele deve resolver. Por isso, e apenas assim, ele será capaz de dizer o direito, não se engajando no conflito, mantendo-se estranho a ele. Somente desde essa perspectiva podemos falar em neutralidade política de qualquer intérprete do direito, inclusive do intérprete autêntico. Pois é certo que - ainda que na interpretação do direito deva prevalecer a força dos princípios (são eles que dão coerência ao sistema) - a neutralidade política do intérprete só existe nos livros. Na práxis do direito ela se dissolve, sempre" (p. 297-298). Para Chaïm Perelman (Éthique cit., nota 7 supra, p. 566), também acerca das decisões dos juízes, "é inevitável que suas escolhas dependam de juízos de valor. (...). Note-se, a esse respeito, que se tem tendência a qualificar de político todo juízo que se afasta demais da opinião média, mas não esqueçamos que esta exprime igualmente juízos de valor, que não chocam na medida em que são largamente compartilhados". Retornando ao editorial em questão - e à forma de seleção de magistrados -, "não é necessária muita malícia, todavia, para imaginar que as audiências reservadas dão margem a decisões arbitrárias", sustentadas por preconceito "moral, religioso, político". É claro que ao se defender, de outro lado, a seleção de candidatos sob um prisma liberal no que diz respeito a tais campos, por exemplo, poder-se-ia dizer que se estaria direcionando também de modo ilegítimo a busca por um determinado perfil específico para a magistratura, em colidência ao próprio pluralismo garantido pela Constituição. Porém, não se pode perder de vista que essa mesma Constituição traz em si uma clara inclinação social-democrata. Assim, o agente político responsável por dizer o direito e que se constitui como a última esperança para garanti-lo concretamente não pode, justamente, defender valores que se contraponham àqueles que são os fundantes de seu Estado, ainda que seja plenamente desejável que haja na magistratura inclinações políticas plurais. Um sujeito de perfil reacionário e intolerante (extremamente conservador em seus valores morais, religiosos e políticos), por exemplo, muito provavelmente não estará apto a lidar com o pluralismo e compromissado com a efetivação dos valores sociais e democráticos plasmados na Carta Magna. Assim, almejar um perfil humanista (que, ilustrado pelas chamadas "perfumarias", conforme nota 19 supra, enxergue valor nos direitos humanos e se mostre disposto e capaz de efetivá-los na prática diária, mesmo diante de pressões contrárias externas e também internas) e verdadeiramente democrático (preocupado não apenas com a igualdade de oportunidades a todos e de participação política pelo mero sufrágio universal, mas também sensível aos valores da solidariedade e fraternidade, bem como à verdadeira emancipação de todos os seres humanos) parece ser inevitável dentro do espírito da sociedade brasileira que aflora de sua norma fundante.
(77)DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder cit., nota 1 supra, p. 26-27.
Disponível em: (https://bay169.mail.live.com/default.aspx?id=64855#tid=cmj6QLT-Yp5BGY2Gw75afaHg2&fid=flinbox). Acesso em: 22/ag/2014.

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