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21 razões pelas quais Temer acertou ao indicar Alexandre de Moraes para o STF
9 de fevereiro de 2017, 8h00
Leio
nos jornais e nas “redes” que há uma indignação de grande parte da
comunidade jurídica com a indicação do ministro da Justiça Alexandre de
Moraes para o Supremo Tribunal Federal. Há centenas de argumentos duros
que estão sendo utilizados contra a indicação de Temer. Há argumentos
respeitáveis pululando na imprensa. Li até que já há petição com mais de
150 mil assinaturas de estudantes de
Direito protestando contra AM. Até agora me mantive distante dessa
discussão. Compreendo o que querem dizer. Mas, particularmente, quero
enfrentar esse fenômeno de uma forma diferente. Porque acredito que
podemos tirar lições desse episódio. Críticas não podem ser flatus vocis. Elas têm de lanhar.
Explico. Há vários modos de analisar um fato. O presidente Lincoln contava uma história
que mostra os diversos lados de uma narrativa: Um rapaz disputava um
emprego público e, para tal, precisava responder a um questionário.
Estava indo muito bem até que esbarrou numa questão delicada: qual a
causa da morte do pai? É que seu pai tinha sido enforcado como ladrão de cavalos. O candidato pensou, pensou, até que veio a luz: “Meu pai participava de uma cerimônia pública, quando a plataforma cedeu”. Dizem que dali é que veio a palavra “bingo”. Algo como “eureca”. Epifânico.
Pronto.
É isso. Pois eu tentarei comentar a indignação de parte da comunidade
jurídica (e dos assinantes do documento que já deve ter passado de 200
mil na hora de fechar este texto) com a indicação do ministro Moraes
também de um modo diferente. Vamos lá. Por que a surpresa se:
1) o
ministro AM escreveu um manual que vem sendo um dos mais — se não o
mais — vendido sobre Direito Constitucional; foram centenas de milhares
de exemplares;
2) critica-se esse tipo de cultura manualesca —
particularmente, faço esse tipo de crítica há 20 anos —, mas AM é
repetidamente citado pelos ministros do STJ e STF, por
juízes, tribunais, advogados e membros do MP (então, onde a surpresa?);
3) AM dominou, antes dos outros, o mercado concurseiro;
4) ninguém vendeu tantos livros como ele;
5) seu livro principal está em 99% das bancadas dos fóruns e tribunais (o que mostra que foi comprado com dinheiro público);
6) durante anos — agora parece que surgiram dezenas de concorrentes — não havia concurso sem AM na bibliografia obrigatória;
7)
convidado — principalmente depois que assumiu o Ministério da Justiça —
para falar nos principais congressos de Direito e aplaudido muitas
vezes de pé pela estudantada; nem falo das filas para selfie e autógrafos;
8)
suas palestras são leves e simples; os estudantes gostam de suas
anedotas, porque facilmente entendíveis pelo “homo juridicus” médio, em
um país no qual os estudantes sequer entendem uma ironia ou sarcasmo;
9)
AM atende, desde os anos 1990, às demandas do imaginário jurídico,
escrevendo de forma simples e facilitada — tudo tão ao gosto da malta
concurseira e do senso comum teórico — que, e isso é inegável, fez
“escola” e, por isso, é/foi tão imitado; não há dúvida de que AM foi
precursor nesse ramo;
10) sem medo de errar, 80% dos alunos e professores que estão lecionando por aí não escreveram coisa melhor que AM;
11)
AM faz uma dogmática jurídica semelhante àquela que domina as práticas
jurídicas, isto é, seus livros fazem uma glosa das decisões
tribunalícias, com baixo senso crítico, cujo resultado é um imenso
sucesso de público e renda;
12) em termos teórico-dogmáticos, AM é
a favor da relativização da presunção da inocência (e daí? O STF também
é em sua maioria — então, surpresa por quê?);
13) AM já se
colocou a favor da relativização da prova ilícita (e daí? Isso é igual
ao que pensa o MPF — vejam o livro do Dallagnol e as decisões de Moro);
14)
fazendo rigorosamente o que faz grande parte da doutrina, AM escreve
sem seguir qualquer matriz teórica, fazendo uma mixagem própria da
dogmática jurídica; daí a pergunta: no que ele faz diferente de outras
teses e livros que enchem as prateleiras por aí?);
15) AM confunde
o sentido do que foi a República de Weimar (mas quantos dos alunos e
professores sabem o que representou esse evento histórico?);
16) sobre interpretação constitucional, AM faz o que 90% da doutrina e tribunais fazem — reproduz os cânones mais conservadores e fragilizadores da autonomia do Direito (de novo: onde está, pois, a surpresa? Querem uma lista de livros que fazem pior que isso?);
17)
AM gosta da tese de que princípios são valores (ora, há ministros no
STF que pensam exatamente isso, além desse mantra ser dominante na
doutrina e até na pós-graduação de Pindorama — portanto, mais um ponto a
favor de AM);
18) AM acredita na ponderação à brasileira (ups —
no que ele difere do jurista médio de Pindorama? Isso foi posto até no
novo Código de Processo Civil; de novo, ponto para ele);
19) ao
que li nos seus livros, AM acha que valores podem valer mais do que a
lei, ou seja, a moral pode filtrar o Direito — claro que não com essas
palavras (e digo mais uma vez: e daí? Querem que eu elenque decisões das
cortes nessa linha? Mais um ponto a favor de AM);
20) AM, quando
secretário de Segurança e recentemente ministro da Justiça, deixou claro
ser da linha dura do Direito, algo como “lei e ordem”; permito-me
dizer: e daí? Qual é a diferença do que vem sendo feito hoje em
matéria penal, quando temos 700 mil presos, dos quais 350 mil
provisórios, que, somados aos que cumprem pena domiciliar, chega a um
milhão? Grande coisa. No STF, há votos que não aceitam
insignificância se houver reincidência; portanto, o novo ministro AM se
sentirá em casa);
21) não recebeu o veto do Sergio Moro (claro, ao que li, também não foi elogiado, mas é mais um ponto a favor).
A
lista a favor da escolha de Alexandre de Moraes poderia ser — e é —
muito maior. Relatei isso para mostrar que isso que o indicado ao STF
pensa e escreve não é diferente do que pensa a maioria dos juristas e o que se ensina nas faculdades e cursinhos do país. AM é produto e produtor de seu meio. O indicado representa um padrão dominante no imaginário jurídico. E ele não está só.
Então:
a) Por que a surpresa? b) A dogmática jurídica média praticada no país é
melhor do que isso que relatei? c) Se é, então está bem escondida,
porque sequer conseguimos fazer cumprir o novo CPC (leiam os livros
sobre isso; leiam a verdadeira desobediência civil que o discurso standard da dogmática vem fazendo...). O que quero dizer — e com isso acuso (j’accuse, para lembrar E. Zola) o ensino jurídico prêt-à-porter e a dogmática fabricante de próteses para fantasmas (o conceito é de Warat) que construímos nesses 27 anos mesmo tendo a melhor CF do mundo. Um país em que é necessário um tribunal proibir revistas coletivas nas casas nas vilas e favelas é, efetivamente, um país que é isso aí mesmo.
Portanto, caros leitores, nada de surpresa e indignação de fariseu. A
propósito: não foi o STF que decidiu, não faz muito, que, à noite, a
casa não é assim um “asilo tão inviolável”? E o que fez a comunidade
jurídica? Quedou-se silente. Como se quedou silente com o total
esvaziamento do artigo 212 do Código de Processo Penal, que diz que
perguntas às testemunhas somente podem ser complementares. E o que
fizeram os tribunais? Nada. Aliás, foram apoiados por parcela da
doutrina processual penal.
Daí a minha lista de pontos a favor de AM para ir ao Supremo. Não há nada do que hoje se faz — lato sensu
— no Direito brasileiro que, de algum modo, já não tenha tido relação
com o imaginário jurídico proporcionado por juristas como Alexandre de
Moraes. Parcela considerável dos que criticam o indicado fazem a mesma
coisa que ele já escreveu há mais de 20 anos e continua escrevendo e
praticando. Vi juízes indignados com a indicação. Pois é. Mas, vendo
como muitos deles decidem, não há nada de diferente do que AM (e da
literatura que ele representa no contexto da produção jurídica) vem
dizendo, pregando e escrevendo. E ele levará isso para a suprema corte.
Ou seja, ele representa magnificamente o imaginário jurídico
predominante nas práticas de salas de aulas e nos fóruns e tribunais do
país.
Numa palavra: AM não representa aquilo que eu venho
escrevendo há mais de 20 anos. Se ele é tese, eu sou antítese. E
vice-versa. Mas o presidente indica quem ele quer. Ele simplesmente
olhou o panorama do Direito praticado no pais. Do Planalto — ao qual ele
chegou do modo como todos sabemos —, olhou a rasa planície e fez sua
indicação. Foi coerente, convenhamos. E o indicado representa o cerne do
imaginário-jurídico-senso-comum-dominante no Direito brasileiro (embora
muita gente “senso comum” agora negue isso). De novo: por que a
surpresa? Basta verificar no que se transformou o Direito. Ou alguém
acredita que “isso que está aí” (desmonte da CF, descumprimentos das
leis, caos no sistema penitenciário, prisão de ofício em pedido de HC,
motorista se aposentando na Bahia com o salário de R$ 20 mil reais etc.)
é fruto de geração espontânea? Milhares de juízes e promotores (e
agentes públicos em geral) passaram nos concursos estudando Alexandre de
Moraes e literatura semelhante, a cada ano mais e mais reciclada, chegando ao ápice com os direitos mastigados, simplificados, simplificadinhas, resuminhos e resumões,
além dos resumos dos resumos e do Direito sendo ensinado por música e
por milhares de cursos de especialização que rendem rios de dinheiro
para os, quem sabe, professores que agora mostram sua indignação com a
indicação de AM para o STF. Deveriam vibrar: o mestre chegou lá.
Em vezes de críticas, homenagens. E mesmo muita gente crítica (ou
sedizente crítica) deveria reler seus (deles) livros e no que ali está
escrito sobre “valores”, “ponderação”, “livre convencimento”, princípios
como valores, pamprincipiologismo etc. Se defendem esses conceitos, não
diferem do que estão criticando. Vai ver, difere apenas no estilo, mas o
conteúdo é muito próximo.
Eis, portanto, meu outro modo de dizer
algo. É paradoxal, mas parece que Michel Temer ajudou em muito o Direito
indicando AM. Se a comunidade jurídica souber ler o fenômeno, pode dele
tirar lições. Ou não (o que é mais provável, em face da tese do
paradoxo do cretense: o conjunto dos enunciados aos quais eu me
refiro... O meu não faz parte).
Pois é. A plataforma, em
cerimônias públicas, às vezes cede. Mas, se não gostaram da metáfora do
enforcamento contada pelo presidente Lincoln, relembro a do cego de
Paris: um cego mendigava em Paris; colocou um pequeno cartaz que dizia: “Sou cego. Ajudem-me”.
O povo passava e ninguém se compadecia. Passou um poeta (que, segundo a
lenda, podia ser um publicitário, mas não importa: prefiro esta
versão), que, pegando o cartaz, reescreveu-o. E lá se foi, deixando o
mendigo a mendigar. Horas depois, retornou ao local e viu que a bandeja
do mendigo estava repleta de moedas. Ao sentir a aproximação do poeta
(através de seus outros aguçados sentidos), o mendigo lhe perguntou
acerca do que escrevera no cartaz... E o poeta respondeu: “Em lugar de ‘sou cego. Ajudem-me’, escrevi: ‘É primavera em Paris... E eu não posso vê-la’”.
Que a cegueira dos juristas não impeça de vermos a primavera do Direito no Brasil, que um dia há de florescer.
Lenio Luiz Streck é
doutor em Direito (UFSC), pós-doutor em Direito (FDUL), professor
titular da Unisinos e Unesa, membro catedrático da Academia Brasileira
de Direito Constitucional, ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul
e advogado.
Revista Consultor Jurídico, 9 de fevereiro de 2017, 8h00.
Original disponível em: (http://www.conjur.com.br/2017-fev-09/senso-incomum-21-razoes-pelas-quais-temer-acertou-alexandre-moraes-stf). Acesso em 08/abr/2017.
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