Postagem 13/fev/2016...
A revolução de Bernie Sanders
Com seus desarrumados cabelos brancos, Bernie é o que há de mais novo na política estadunidense. Faz sentido que o slogan principal que sua campanha adotou nos últimos dias tenha sido “um futuro em que se pode acreditar”. Contra ele, todo o passado que estabeleceu o atual estado de coisas. Só por isso toda a esquerda mundial deve acompanhar o processo com atenção
Por Guilherme de Paula
O
resultado do caucus em Iowa na noite desta segunda-feira (1) deu substância e
materialidade a uma curiosa jornada em curso na maior potência do planeta nos
últimos meses: um senador que se intitula socialista e que passou toda sua
carreira política como independente tem chances reais de vencer Hillary Clinton
na corrida pela nomeação democrata para as eleições nacionais para a sucessão
de Barack Obama na Casa Branca.
A
narrativa ganha ainda contornos de inegável improbabilidade quando ficamos
atentos ao vocabulário que o candidato introduziu no debate eleitoral
estadunidense para atingir tal status. Bernie fala em “revolução
política”, “socialismo”, “classe trabalhadora”, “redistribuição” e entoa, em
todo discurso, como uma provocação em forma de refrão: “querem ouvir uma ideia
radical?”, entre outras noções que embora sejam clássicas da política moderna,
raramente ocupam alguma centralidade no debate daquela nação. Não é incomum
assistirmos em seus comícios críticas e provocações a empresas gigantes dos
mercados, como fez com a Goldman Sachs, Wall-Mart e Monsanto.
Não
são apenas palavras. A plataforma programática de Bernie, ou, digamos, o seu
“socialismo democrático”, é bastante audacioso se pensado dentro do contexto em
que se insere: sistema de saúde público e gratuito, universidade sem taxas,
reforma do sistema de doação eleitoral minando a força das grandes corporações,
criação de empregos públicos para reconstrução da infraestrutura do país
(pontes, estradas etc), dobrar o salário mínimo (saltar para 15 dólares por
hora), combater a mudança climática taxando e limitando as grandes corporações,
uma política de imigração humanitária, o fim da política do massivo encarceramento
de jovens pobres, negros e latinos, reforma radical do sistema tributário
taxando altas riquezas e punindo especuladores de Wall Street trocando a
política de multas por processos penais, uma política diplomática multilateral
e que empreenda os países do mundo árabe como combatentes na luta contra o
Estado Islâmico.
O
programa ganha tom de autenticidade por dois motivos: primeiro, porque prima
pela educação política e não pelo oportunismo de dizer o público quer ouvir.
Foi Bernie que introduziu a sua noção de “socialismo democrático” e suas pautas
no debate, certamente não sem um custo político que não é dos mais favoráveis
em um contexto marcado pela influência de quase um século de anticomunismo e
ultrapromoção dos valores capitalistas. Não há um debate ou uma entrevista
importante em que o candidato não tenha que se explicar em relação ao que
denomina socialismo. O faz geralmente aproximando-se do que a Europa acostumou
chamar o Welfare State, sem nenhuma crítica expressa ao
capitalismo, o que fez com que Noam Chomsky o considerasse, recentemente em
entrevista à Al Jazeera, “um new Dealer”, repetindo uma expressão em tom de
crítica pelas suas limitações de radicalidade que a revista Jacobin já
vem fazendo desde o ano passado. De qualquer maneira, não parece nenhum
oportunismo de Bernie ao reivindicar debates e questões que não são de fácil
comoção e que demandam toda uma construção argumentativa para fazer valer suas
explicações. Aliás, mesmo os seus críticos de esquerda reconhecem que ele é,
indiscutivelmente, o melhor candidato da disputa.
A
autenticidade de sua campanha ainda se escora em outro ponto. A trajetória de
Bernie se inscreve, como o professor Cornel West e a atriz Susan Sarandon já
disseram ao apresentá-lo em comícios e Iowa durante a semana, na tradição de
pensamento democrático mais radical e libertário que os Estados Unidos
experimentaram ao longo da segunda metade do século XX e início do XXI. O
senador de Vermont esteve quase sempre – as duas exceções talvez sejam a sua
posição em relação a Palestina e Israel e o seu posicionamento perante ao
controle de armas – do lado mais radical e crítico das questões políticas que
marcaram os Estados Unidos. Nos anos 1960, foi militante dos direitos civis e
marchou com Luther King, nos anos 1980 se pronunciou diversas vezes em favor
dos direitos LGBT e ao longo de sua caminhada foi atuante defensor da classe
trabalhadora em incontáveis disputas contra corporações de diversos ramos
possíveis – petrolífero, da saúde, dos bancos, das empresas de varejo, do
complexo militar-industrial etc.
A
jornada nas primárias democratas não é das mais simples: para vencer ou ao
menos fazer frente à sua rival, precisa enfrentar uma estrutura partidária
estabelecida e aparelhada pela família Clinton há décadas, uma façanha que
Obama conseguiu há oito anos. Na época, muitos avaliaram que o casal ignorou a
possibilidade de perder e que a arrogância na análise não permitiu resguardos
que certamente freariam a ascensão do então senador de Chicago. Desta vez estão
preparados e vacinados. Enfrentar este poderio exige, além de força e ideias,
muito dinheiro e muita capacidade de comoção de militantes dispostos a
trabalhar de graça.
Em
Iowa, estima-se que mais de 15 mil voluntários pediram votos por Bernie. Além
disso, um montante inédito na história das eleições estadunidenses de doações
individuais abasteceu os cofres da campanha. No discurso da noite desta
segunda-feira, o candidato afirmou ter recebido 3.5 milhões de doadores
individuais em uma média de 27 dólares cada. Além das doações dos seus
militantes, Sanders tem como principais contribuintes financeiros uma série de
sindicatos: dos trabalhadores têxteis, dos profissionais das telecomunicações,
das enfermeiras, dos empregados postais, dos bombeiros, dos maquinistas e
aeroviários, entre outros. Nesta semana, a banda californiana Red Hot Chilli
Peppers anunciou que fará um show com intuito de arrecadação para a campanha de
Bernie. Um esforço charmoso e até heroico, mas de difícil sustentação se
comparado à incomparável capacidade de arrecadação de sua rival – aliás, a
tendência é que os empresários aumentem ainda mais o investimento na candidata
com crescimento de seu adversário, sobretudo após o resultado do caucus de Iowa
e das pesquisas de New Hampshire o confirmarem como uma ameaça real.
A
viabilidade eleitoral de Bernie Sanders agora constatada já trouxe algumas
consequências. A mais relevante pode ter sido o fato divulgado pela imprensa há
alguns dias, de que o serviço secreto designou uma equipe para protegê-lo. Perguntado
pela CNN se tinha recebido alguma ameaça que motivara a novidade, o senador
disse que não poderia responder por questões de segurança. Seu crescimento
incomoda o establishment econômico e seus correspondentes
midiáticos e políticos. Suas frases são distorcidas e tiradas de contexto pela
grande imprensa e talvez o episódio recente mais representativo tenha vindo do Washington
Post, que na semana passada publicou um editorial acusando-o de
desrespeitar as normas e formas democráticas do país ao propor sua “revolução
política”.
Na
noite em que Hillary e Bernie virtualmente empataram na disputa por delegados
de Iowa, o terceiro candidato democrata na corrida, o ex-governador de
Maryland, Martin O’Malley, desistiu de continuar a disputa, transformando em
oficial a polarização entre establishment e tudo que cerca a
dinastia Clinton versus o antissistema representado na figura de Bernie. A
expressão “feel the bern”, trocadilho que ganhou as redes sociais nas últimas
semanas, caracteriza a expansão e o crescimento de um candidato que se ergueu
com uma trajetória sólida, coerente e consistente, que se tornou viável se
esgueirando nas bordas de um partido que se organizou para que Hillary não
tivesse concorrentes e que, quando teve a oportunidade, se expandiu levando um
discurso que embora não seja novo na história da política moderna, ainda não
havia encontrado momento propício para reverberar na superpotência do nosso
tempo.
Sanders
já rumou para New Hampshire para a próxima etapa de sua jornada. Com seus desarrumados
cabelos brancos – que nos serve como um lembrete constante de que este senhor
pode ser o mais velho presidente dos Estados Unidos de todos os tempos, com as
mesmas pautas que sustenta desde a década de 1960 e 1970 e seu antigo
socialismo democrático, Bernie é o que há de mais novo na política
estadunidense. Faz sentido que o slogan principal que sua campanha
adotou nos últimos dias tenha sido “um futuro em que se pode acreditar”. Contra
ele, todo o passado que estabeleceu o atual estado de coisas. Só por isso toda
a esquerda mundial deve acompanhar o processo com atenção. Há muito para se
aprender com a trajetória de Bernie Sanders desafiando de maneira arrojada e
improvável uma série de poderes estabelecidos no coração do capitalismo
mundial.
Foto de capa: Gage
Skidmore/Flickr
Original disponível em: (http://www.revistaforum.com.br/semanal/revolucao-de-bernie-sanders/). Acesso em 13/fev/2016.
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