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terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Do Controle da Insuficiência de Tutela Normativa aos Direitos Fundamentais Processuais (Luiz Guilherme-MARINONI)

16/dez/2014...

Do Controle da Insuficiência de Tutela Normativa aos Direitos Fundamentais Processuais*


Autor:
MARINONI, Luiz Guilherme
15/12/2014
RESUMO: Nos países onde o controle de constitucionalidade é incidental, ou é conjugado com o controle principal - como no Brasil -, o desenvolvimento do argumento da inconstitucionalidade por omissão não precisa nem deve se manter distante da noção de que todo e qualquer juiz tem o poder-dever de, incidentalmente, realizar o controle de constitucionalidade. É certo que o mandado de injunção permite o controle da omissão constitucional no caso concreto. Porém, a realidade forense mostra, cotidianamente, que os juízes de 1º grau, assim como os Tribunais de Justiça e Regionais Federais, realizam controle de constitucionalidade por omissão com grande frequência. Portanto, mais do que detectar que a omissão inconstitucional está inserida no poder conferido a todo e qualquer juiz de controlar a constitucionalidade, é importante perceber que este poder vem sendo exercido de forma escamoteada e que, bem por isso, não existe qualquer metodologia para tanto e, muito menos, modo de controle do raciocínio judicial.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos Fundamentais. Insuficiência de Tutela Normativa.
SUMÁRIO: 1 Primeiras Considerações. 2 O Poder de Controlar a Insuficiência de Tutela Normativa aos Direitos Fundamentais. 3 Situações em que a Falta de Lei é Frequentemente Suprida na Prática. 4 A Eficácia dos Direitos Fundamentais, o Dever Estatal de Tutela e o Juiz no Controle da Insuficiência da Tutela Normativa. 5 O Limite Judicial no Suprimento da Falta de Lei Necessária à Tutela de Direito Fundamental. 6 Da Insuficiência de Tutela Normativa a Direito Fundamental Processual. 7 Legitimidade do Raciocínio Decisório no Suprimento de Técnica Processual.
1 Primeiras Considerações
Os primeiros passos do controle de constitucionalidade por ação já eram distantes no tempo quando se passou a falar em omissão inconstitucional. Os brotos da concepção de controle de inconstitucionalidade por omissão surgiram quando se percebeu que não bastava impedir o legislador de agredir a Constituição, sendo também necessário garantir a efetividade das normas constitucionais e a plena realização dos direitos fundamentais, de modo que a questão da omissão constitucional é corolário da compreensão de que a Constituição, para ser cumprida, necessita de prestações normativas ou da ação do legislador infraconstitucional.
Se essa percepção surgiu na doutrina de países onde o controle de constitucionalidade é entregue nas mãos de Cortes Constitucionais é natural que a questão tenha sido associada ao controle por via direta ou principal de constitucionalidade. Porém, tal associação não se mostra adequada à tradição brasileira, na qual o controle de constitucionalidade, desde a última década do século XIX, é difuso e realizado na forma incidental.
Nos países onde o controle de constitucionalidade é incidental, ou é conjugado com o controle principal - como no Brasil -, o desenvolvimento do argumento da inconstitucionalidade por omissão não precisa nem deve se manter distante da noção de que todo e qualquer juiz tem o poder-dever de, incidentalmente, realizar o controle de constitucionalidade.
É certo que o mandado de injunção permite o controle da omissão constitucional no caso concreto. Não obstante, não se cuida do problema do controle da omissão constitucional diante dos casos conflitivos concretos endereçados aos juízos e tribunais ordinários. É curioso, já que não se pode supor que a omissão constitucional não possa existir nessas situações.
Porém, a realidade forense mostra, cotidianamente, que os juízes de 1º grau, assim como os Tribunais de Justiça e Regionais Federais, realizam controle de constitucionalidade por omissão com grande frequência. A gravidade disso está na ausência de método para a feitura desse controle, para não dizer que, bem vistas as coisas, os juízes e tribunais ordinários sequer percebem que estão a suprir a "ausência de lei".
Portanto, mais do que detectar que a omissão inconstitucional está inserida no poder conferido a todo e qualquer juiz de controlar a constitucionalidade, é importante perceber que esse poder vem sendo exercido de forma escamoteada e que, bem por isso, não existe qualquer metodologia para tanto e, muito menos, modo de controle do raciocínio judicial.
Note-se que se o juiz, sem dizer nem muito menos justificar, supre a ausência de lei, ele assume um poder que, ainda que possa ser dele, é exercido de modo completamente arbitrário e destituído de legitimação, a reclamar atenção da academia e dos tribunais.
2 O Poder de Controlar a Insuficiência de Tutela Normativa aos Direitos Fundamentais
As Constituições, ao instituírem direitos dependentes de prestações normativas a cargo do legislador, evidenciaram que, para negar a sua força e autoridade, não era mais suficiente editar leis destoantes do Texto Constitucional. A autoridade e a força da Constituição também passaram a depender de normas infraconstitucionais.
Nessa perspectiva não se está aludindo, como é óbvio, apenas às normas constitucionais que expressamente impõem, mediante termos variados, o dever de legislar. O problema, aqui, diz respeito às normas de natureza impositiva ou negativa imprescindíveis à realização ou à proteção de direitos fundamentais.
Pois bem. Não existe razão para entender que o juiz tem poder para controlar a constitucionalidade da lei e não tem poder para controlar a falta de lei quando esta é imprescindível à tutela de um direito fundamental. A constitucionalidade da lei e da falta de lei, nessa dimensão, constituem duas faces de uma mesma moeda.
O controle da omissão inconstitucional, via modelo difuso, será possível quando da lei faltante depender a tutela do direito fundamental pertinente ao caso conflitivo concreto. Ou seja, o controle da omissão constitucional por qualquer juiz ou tribunal convive com a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e mesmo com o mandado de injunção.
3 Situações em que a Falta de Lei é Frequentemente Suprida na Prática
São frequentes as ações coletivas em que o legitimado, ao pedir a tutela de determinado direito de natureza difusa ou coletiva, deduz ausência de norma de proteção a direito fundamental. Também são comuns as ações individuais em que, sob o fundamento de direito fundamental não protegido normativamente, postula-se prestação fática que estaria a cargo do Estado.
Note-se que a proteção de direito fundamental pode depender de norma impositiva ou proibitiva. É possível que, para a tutela do direito ambiental, do direito do consumidor, etc., seja necessária norma impondo conduta positiva ou negativa ao administrado. Assim, por exemplo, para obrigá-lo a instalar (norma positiva) tecnologia destinada a diminuir a efusão de gazes e poluentes ou a não comercializar (norma negativa) produto com determinada substância. Além disso, há caso em que a prestação estatal, embora de natureza fática, depende de norma. É o caso, por exemplo, dos medicamentos, em que o indivíduo, afirmando direito fundamental à saúde, postula, em face do Estado-Administração, determinado remédio não disciplinado na legislação.
Os juízes, não raramente, são chamados a suprir omissões normativas que impedem a tutela de direitos fundamentais, inclusive de natureza processual. Lembre-se, por exemplo, da determinação de ouvida do embargado nos embargos de declaração admitidos com efeitos modificativos. A extensão dos embargos de declaração, cujas regras de regência não permitirem a alteração da decisão judicial, e a consequente necessidade de abertura à participação da parte que pode ser afetada, apenas podem estar baseadas nos direitos fundamentais à tutela jurisdicional efetiva e ao contraditório.
O problema é que, quando se complementa a legislação em casos como os mencionados, não há qualquer percepção de que se está diante de controle de insuficiência de tutela normativa e, portanto, de que há necessidade de aplicação da regra da proporcionalidade e de um raciocínio judicial racionalmente adequado, com reflexo na devida justificativa da decisão.
4 A Eficácia dos Direitos Fundamentais, o Dever Estatal de Tutela e o Juiz no Controle da Insuficiência da Tutela Normativa
Há discussão sobre a questão da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ou seja, sobre a eficácia dos direitos fundamentais sobre as relações entre os particulares (1). Fala-se em eficácia imediata e mediata desses direitos sobre os sujeitos privados. A eficácia mediata dependeria da mediação do Estado, ao contrário da eficácia imediata, que dispensaria tal intervenção. Como é intuitivo, a questão da eficácia dos direitos fundamentais sobre os particulares possui intima relação com o tema do controle da omissão inconstitucional.
Alude-se à eficácia mediata quando se diz que a força jurídica das normas constitucionais apenas pode se impor, em relação aos privados, por meio de normas infraconstitucionais (2) e dos princípios de direito privado. Tal eficácia também existiria quando as normas constitucionais são utilizadas, dentro das linhas básicas do direito privado, para a concretização de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados (3).
De acordo com os adeptos da teoria da eficácia imediata, ao inverso, os direitos fundamentais são aplicáveis diretamente sobre as relações entre particulares. Além de normas de valor, teriam importância como direitos subjetivos contra entidades privadas portadoras de poderes sociais ou mesmo contra indivíduos que tenham posição de supremacia em relação a outros particulares. Chegando-se mais longe, admite-se a sua incidência imediata também em relação a "pessoas comuns". Vale dizer: dispensa-se a intermediação do legislador - e assim as regras de direito privado - e se elimina a ideia de que os direitos fundamentais poderiam ser utilizados apenas para preencher as cláusulas abertas (4).
De lado essa discussão, o fato é que os direitos fundamentais obrigam o Estado a uma prestação normativa de proteção e, assim, à edição de normas para proteger um particular contra o outro. Quando essas normas não são observadas, surge ao particular o direito de se voltar contra aquele que não a cumpriu. Aliás, o direito de ação - nessas hipóteses - poderá ser exercido mesmo no caso de ameaça de violação (ação inibitória). Nesse caso, há lei, abaixo da Constituição, regulando as relações entre os particulares. Na hipótese de lei restritiva de direito fundamental, além dos valores constitucionais que justificam a restrição, deverá ser enfocado o direito limitado, que deve ter o seu núcleo essencial protegido (5). O legislador obviamente não pode negar o núcleo do direito fundamental limitado (6). Porém, quando não existe lei, a regular a situação de forma direta, não se pode pensar que os direitos fundamentais não podem ser tomados em consideração diretamente pelo juiz.
Se a lei que impede a realização dos direitos fundamentais constitui um obstáculo visível que deve ser suprimido, a omissão de lei, ao impedir a efetividade desses mesmos direitos, não pode deixar de ser considerada. A omissão se faz clara e concreta quando o juiz conclui que ela representa uma negação de proteção a um direito fundamental. Nesse caso, como também naquele em que atua mediante o preenchimento das cláusulas gerais, o juiz deve atentar para a necessidade de conciliação entre os direitos fundamentais, pois a tutela de um direito fundamental, com a supressão da omissão legal, poderá atingir outro direito fundamental (7).
Canaris, ao abordar a questão da repercussão dos direitos fundamentais sobre os sujeitos privados, propõe a observância da distinção entre eficácia imediata e vigência imediata. Segundo Canaris, os direitos fundamentais têm vigência imediata, mas se dirigem apenas contra o legislador e o juiz (8). A construção de Canaris é preocupada com o art. 1º, n. 3, da Lei Fundamental alemã, que afirma que os direitos fundamentais vinculam, "como direito imediatamente vigente", o legislador e os órgãos jurisdicionais. Alega que os "destinatários das normas dos direitos fundamentais, são, em princípio, apenas o Estado e os seus órgãos, mas não os sujeitos de direito privado" (9). Nessa linha, conclui que os objetos de controle, "segundo os direitos fundamentais, são, em princípio, apenas regulações e atos estatais, isto é, sobretudo leis e decisões judiciais, mas não também atos de sujeitos de direito privado, ou seja, e sobretudo, negócios jurídicos e atos ilícitos" (10).
Sendo o Estado o destinatário dos direitos fundamentais, não se pensa em eficácia imediata perante terceiros (11). Ou melhor, nessa dimensão não se cogita de eficácia horizontal direta, mas apenas na intermediação da lei e da decisão judicial para a projeção dos direitos fundamentais. Porém, não há razão para negar que a decisão do juiz, como destinatário dos direitos fundamentais, produz efeitos sobre as relações entre os particulares, embora isso ocorra mediatamente (12).
Mesmo que se aceite que apenas o legislador e o juiz são os destinatários dos direitos fundamentais, é certo que a decisão judicial incide sobre a esfera jurídica dos particulares. Como a doutrina de Canaris foi influenciada pela Lei Fundamental alemã, a sua preocupação foi a de deixar claro que os direitos fundamentais vinculam o legislador e o juiz, embora podendo ser tomados em consideração para a definição dos litígios que envolvem os particulares.
Canaris adverte que os direitos fundamentais têm função de mandamento de tutela (ou de proteção), obrigando o legislador a proteger um cidadão diante do outro. No caso de inexistência ou insuficiência dessa tutela, o juiz deve tomar em conta essa circunstância, projetando o direito fundamental sobre as relações entre os sujeitos privados e, assim, conferindo a proteção prometida pelo direito fundamental, mas esquecida pela lei. Nessa linha, por exemplo, se o legislador não atuou de modo a proteger o empregado diante do empregador, quando tal era imperioso em face do direito fundamental, houve omissão de tutela ou violação do dever de proteção estatal (13).
O raciocínio de Canaris está preso a uma premissa que o impede de ir além desse ponto. Na visão tradicional do direito constitucional alemão - compartilhada pelo autor -, cujo principal marco é a decisão do Tribunal Constitucional Federal no caso Lüth, os direitos fundamentais só caracterizam direitos subjetivos reclamáveis por seus titulares quando aparecem como proibições de intervenção e direitos de defesa. Isso não ocorre quando se trata de mandamentos de tutela e deveres de proteção. Nesse último caso, vislumbram-se, apenas e tão somente, deveres objetivos do poder público, aos quais não correspondem direitos subjetivos dos indivíduos. Não por acaso Canaris se utiliza, num caso, da expressão direito (direitos de defesa) e, no outro, da expressão dever (deveres de proteção). Por trás dessa nomenclatura está a tese de que a Constituição garante aos indivíduos apenas direitos originários negativos, de abstenção estatal, e não direitos originários positivos, direitos de prestação por parte do Estado. Estes últimos a Constituição consagra unicamente por meio de princípios objetivos, que impõem deveres ao Estado, vinculando legisladores, administradores e juízes, sem, contudo, serem exigíveis por seus próprios beneficiários. Assim, a partir do momento em que a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais se baseia nos mandamentos de tutela e deveres de proteção, automaticamente se exclui a possibilidade de os direitos fundamentais regularem diretamente as relações privadas.
Não obstante, não há motivo para não se admitir, no direito brasileiro, o dever de o juiz considerar o direito fundamental e, ao mesmo tempo, aplicá-lo de forma a não violar o direito fundamental que com ele se contrapõe. Note-se que, nessa dimensão, interessa apenas saber se o direito fundamental pode ser diretamente considerado pelo juiz no momento da solução do litígio.
5 O Limite Judicial no Suprimento da Falta de Lei Necessária à Tutela de Direito Fundamental
Não há dúvida de que a teoria de que os direitos fundamentais têm função de mandamento de tutela (ou de proteção), obrigando o juiz a suprir a omissão ou a insuficiência da tutela (ou da proteção) outorgada pelo legislador, facilita a compreensão da possibilidade de o juiz poder controlar a omissão inconstitucional.
Quando se tem presente dever de proteção e, dessa forma, que uma medida idônea deve ser instituída pelo legislador, a ausência de tutela normativa - ou a falta de lei - pode ser levada a qualquer juiz, a ele pedindo-se medida de proteção que supraa omissão inconstitucional. Aliás, quando da própria norma constitucional resulta que, para que o direito fundamental seja realizado, o particular deve observar determinada prestação, nada impede que dele se exija o imediato cumprimento (14), ainda que a questão possa ser apresentada ao juiz, por qualquer das partes envolvidas, para a definição da legitimidade da providência.
Porém, as normas de direitos fundamentais não definem a forma, o modo e a intensidade com que um particular deve ser protegido diante do outro. Em outras palavras, os direitos fundamentais, ao gerarem dever de proteção por parte do Estado, não dizem "como" esta tutela deve se dar. Pensar em "como" o Estado protege os direitos fundamentais é o mesmo do que considerar as providências que o Estado deve necessariamente tomar para tutelá-los. A Constituição possui, quando muito, disposições fragmentárias sobre as medidas de tutela que devem ser utilizadas à tutela dos direitos fundamentais.
Frise-se que a decisão a respeito de como um dever de tutela deve ser cumprido é, antes de tudo, questão afeta ao parlamento (15). Quando o legislador viola um direito fundamental na sua função de mandamento de tutela, cabe ao Judiciário assegurar o adequado grau de tutela do direito fundamental. Não obstante, o problema está na circunstância de que a ação do juiz, diante da falta de lei, não tem a mesma elasticidade ou a mesma latitude da ação do legislador. Para ser mais claro: o legislador tem ampla esfera de liberdade para a definição da providência ou do meio para a tutela do direito fundamental, enquanto o juiz, exatamente por não ter a mesma latitude de poder do legislador, deve atuar apenas para garantir que o dever de proteção satisfaça as exigências mínimas na sua eficiência. Assim, incumbe ao juiz atuar de modo a impor não mais do que o mínimo necessário à proteção do direito fundamental (16).
O legislador tem ampla margem de manobra entre as proibições de insuficiência e de excesso, mas essa margem, ou essa latitude de poder, não é a mesma que está liberada à intervenção do Judiciário. Mais do que responder a um dever de tutela, o Judiciário garante o controle da insuficiência da tutela devida pelo legislador. Na verdade, o controle da insuficiência tem, no raciocínio argumentativo judicial, o dever de proteção como antecedente lógico, no exato sentido de que o juiz, para controlar a insuficiência e impor o meio mínimo para a satisfação do dever de proteção, deve, antes de tudo, verificar se há dever de proteção a direito fundamental e, após, analisar como a legislação deve se manifestar para não descer abaixo do mínimo de proteção jurídico-constitucionalmente exigido (17).
Nesses termos, o juiz, ao suprir a omissão de tutela a direito fundamental, não pode ir além do que é minimamente suficiente para garantir o dever de proteção. Ir além é adentrar em espaço proibido a quem tem incumbência de apenas controlar a insuficiência de tutela ou, em outros termos, dar ao juiz poder igual ao do legislador.
6 Da Insuficiência de Tutela Normativa a Direito Fundamental Processual
Os direitos fundamentais, porque geram dever de tutela ao Estado e, ao mesmo tempo, incidem sobre as relações dos privados, têm, respectivamente, eficácias vertical e horizontal (18). Assim, o legislador e o juiz têm dever de tutelar os direitos fundamentais em razão de estes terem eficácia vertical. Enquanto isso, a lei ou a decisão judicial, regulando as relações entre os privados, incidem sobre estes horizontalmente. A eficácia dos direitos fundamentais, mediada pela lei ou pela decisão judicial, constitui eficácia mediata.
Algo um pouco diferente ocorre quando se pensa nos direitos fundamentais de natureza processual, como o direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional (art. 5º, XXXV, da CF) (19). Esse direito fundamental, é claro, incide sobre o Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário). O legislador, também aí, tem dever de proteção. A omissão normativa, assim, igualmente pode ser suprida pelo juiz na medida da suficiência mínima à proteção do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva. O problema é que o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva incide sobre o juiz para permitir-lhe tutelar os direitos - quaisquer que sejam eles, fundamentais ou não - de forma efetiva, ou seja, para permitir-lhe desempenhar função estatal de forma idônea. Ou melhor, o dever de controle de insuficiência, nesse caso imposto ao juiz, não lhe dá o poder de editar decisão que regule situação substancial entre privados.
A relação do juiz com os direitos fundamentais deve ser vista de maneira particular quando são considerados os direitos fundamentais processuais, especialmente o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva. Quando o juiz tutela um direito fundamental material, suprindo a omissão do legislador, o direito fundamental tem eficácia horizontal mediada pela jurisdição. Porém, o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, ao incidir sobre a jurisdição, objetiva conformar o seu próprio modo de atuação (20).
A jurisdição toma em conta o direito fundamental material para que ele incida sobre os particulares, mas considera o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva porque a sua função deve ser cumprida de modo a propiciar o alcance da tutela dos direitos, sejam eles fundamentais ou não. O direito fundamental material incide sobre o juiz para que possa se projetar sobre os particulares, enquanto o direito fundamental à tutela jurisdicional incide sobre o juiz para regular a sua própria função.
A decisão jurisdicional faz a ponte entre o direito fundamental material e os particulares, ao passo que os direitos fundamentais instrumentais ou processuais são dirigidos a vincular o próprio procedimento estatal. No primeiro caso, o direito fundamental incide mediatamente sobre os particulares, ao passo que, no último, não se pode pensar na sua incidência - nem mesmo mediata - sobre os particulares. Tal direito fundamental se destina unicamente a regular o modo do proceder estatal e, por isso, a sua única eficácia é sobre o Estado, evidentemente direta e imediata.
Perceba-se que, no caso de eficácia mediada pelo juiz, o conteúdo da decisão (a regra nela fixada) incide sobre os particulares. Nessa hipótese, o direito fundamental se projeta sobre os sujeitos privados. Trata-se, portanto, de eficácia sobre os particulares - e, assim, horizontal - mediada pelo juiz, e, por isso, dita mediata ou indireta. A eficácia vertical em relação ao juiz deriva do direito fundamental material, que lhe confere dever de proteção e acaba tendo repercussão horizontal quando se projeta, mediante a decisão, sobre os privados.
Porém, algo distinto acontece quando se pensa na incidência do direito fundamental em face dos órgãos estatais - que também é eficácia vertical -, para o efeito de vincular o seu modo de proceder e atuar. Nessa hipótese, o direito fundamental, ainda que tenha por objetivo vincular o modo de atuação do Estado perante o particular, não objetiva regular as relações entre os particulares e, por isso mesmo, não precisa ser mediado pelo juiz.
Na realidade, o direito fundamental à tutela jurisdicional, ao recair sobre a atividade do juiz, pode repercutir lateralmente sobre o particular, conforme o maior ou menor "grau de agressividade" da técnica processual empregada no caso concreto. Mas nunca horizontalmente, uma vez que esse direito não se destina a regular as relações entre os sujeitos privados.
Nessa perspectiva, para se evitar a confusão entre a eficácia do direito fundamental material objeto da decisão judicial e a eficácia do direito fundamental sobre a atividade do juiz, deve ser feita a distinção entre eficácia horizontal mediatizada pela decisão jurisdicional e eficácia vertical com repercussão lateral, essa última própria do direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional. Enquanto o direito fundamental material incide sobre os particulares por meio da decisão (eficácia horizontal mediatizada pelo juiz), o direito fundamental à tutela jurisdicional incide sobre a jurisdição e repercute, lateralmente, sobre as partes. No primeiro caso, o juiz atua porque tem o dever de proteger os direitos fundamentais materiais e, assim, de suprir a omissão de proteção do legislador; no segundo, porque tem o dever de dar tutela efetiva a qualquer tipo de direito, ainda que a lei não lhe ofereça técnicas adequadas.
Quando o juiz não encontra técnica processual idônea à tutela do direito, e assim se pode falar em omissão ou insuficiência de regra processual, ele deve suprir essa falta ou insuficiência com os olhos nas exigências do direito material que reclama proteção. Afinal, como esclarece Canotilho, o direito de acesso aos tribunais - também por ele reconhecido como direito a uma proteção jurisdicional adequada - é um direito fundamental formal que carece de densificação através de outros direitos fundamentais materiais (21). O que o direito à tutela jurisdicional assegura a seu titular é um poder (power), cujo correlativo é uma situação de sujeição (liability) (22), ou seja, é o poder de exigir do Estado que ele o proteja perante a violação dos seus direitos. Não se trata de um direito a uma ação ou omissão determinada por parte do Estado ou a um bem específico, mas a um exercício de poder do Estado cujos contornos só serão definidos à luz do direito material do particular que reivindica proteção. Em rigor, trata-se do poder de uma pessoa de provocar um órgão público para que este ponha em marcha o poder estatal de intervir coercitivamente na esfera jurídica de um terceiro de maneira adequada a assegurar um direito.
Ora, se já está predeterminado qual é o direito a ser tutelado, condição que é pressuposta pelo direito à efetividade da tutela jurisdicional, e a discussão gira em torno apenas de qual o meio adequado para conferir efetividade a esse direito, não há controvérsia ou dúvida sobre quem tem direito a quê, não há problema interpretativo a ser solucionado ou situação jurídica a ser esclarecida. Não há necessidade de se justificar a intervenção coercitiva do Estado na esfera jurídica do particular. Isso já está feito. A questão que persiste diz respeito unicamente ao modo dessa intervenção, ao meio pelo qual o Estado deve agir para preservar o direito reclamado. Nesse contexto, a dúvida apenas se coloca quando existe mais de um meio apto a satisfazer o direito tutelado. Não há aqui debate sobre meios mais e menos eficazes, simplesmente porque um meio é plenamente eficaz e satisfaz o direito protegido ou não é plenamente eficaz e, então, não satisfaz o direito protegido. Sendo necessário escolher entre diferentes meios aptos, tendo-se em conta que nenhuma ação estatal pode ser arbitrária, ainda mais quando acarreta prejuízo, ônus ou encargo a um particular, é preciso haver critérios para tanto. O critério aqui só pode ser o da menor lesividade. Se existem duas formas possíveis pelas quais o Estado pode onerar um particular, alcançando mediante todas elas o mesmo benefício, obviamente a única forma não arbitrária de oneração, entre estas, é aquela que impõe o menor dano à esfera jurídica do particular.
Ou seja, não é necessário sopesar o direito à efetividade da tutela jurisdicional e o direito de defesa. Esses direitos não entram em colisão. Cada um deles incide num plano distinto, sem que se produza qualquer espécie de antinomia. O primeiro exige a seleção de um meio idôneo para a proteção do direito reivindicado; o segundo, a escolha - na hipótese de existirem diversos meios idôneos - daquele que se mostre como o menos lesivo à esfera jurídica do particular afetado (23).
No caso da eficácia horizontal mediatizada pela decisão jurisdicional, a ponderação é feita para que o direito fundamental tenha eficácia sobre os particulares. Já no caso da eficácia vertical com repercussão lateral não há que se falar em ponderação ou em sopesamento, mas em um teste de adequação - pelo motivo de que o Estado se submete diretamente ao direito fundamental à tutela jurisdicional - e em um teste de necessidade ou lesividade mínima, vez que essa eficácia pode se refletir ou repercutir lateralmente sobre a parte.
As definições de eficácia horizontal mediatizada pela jurisdição e de eficácia vertical com repercussão lateral permitem que se compreenda a possibilidade de a jurisdição suprir a omissão do legislador em proteger um direito fundamental material e em dar ao juiz os instrumentos ou as técnicas processuais capazes de conferir efetividade à proteção jurisdicional dos direitos, sejam fundamentais ou não, sem que com isso se retire da parte atingida pela atuação jurisdicional o direito de fazer com que os seus direitos sejam considerados diante do caso concreto.
7 Legitimidade do Raciocínio Decisório no Suprimento de Técnica Processual
Tratando-se de insuficiência de previsão processual ou de inexistência de técnica processual adequada ao caso concreto, não bastará ao juiz demonstrar a imprescindibilidade de determinada técnica processual não prevista em lei, mas também será necessário a ele argumentar que a técnica processual identificada como capaz de dar efetividade à tutela do direito é a que traz a menor restrição possível à esfera jurídica do réu (24).
No caso de omissão inconstitucional, a identificação das necessidades dos casos concretos e o uso das técnicas processuais idôneas para lhes dar proteção obviamente devem ser precisamente justificados. Na verdade, o juiz deve estabelecer uma relação racional entre o significado da tutela jurisdicional no plano substancial (tutela inibitória, ressarcitória, etc.), as necessidades do caso concreto e a técnica processual (técnica antecipatória, sentença executiva, multa coercitiva, busca e apreensão, etc.). Em outros termos, deve demonstrar que determinada situação de direito material deve ser protegida por certo tipo de tutela jurisdicional, e que, para que essa modalidade de tutela jurisdicional possa ser implementada, deve ser utilizada uma precisa técnica processual.
Antes de partir para o encontro da técnica processual adequada, o juiz deve demonstrar as necessidades de direito material, indicando como as encontrou no caso concreto. De maneira que a argumentação relativa à técnica processual se desenvolve sobre um discurso de direito material já justificado. Nesse caso existem dois discursos: um primeiro sobre o direito material, e outro, incidente sobre o primeiro, a respeito do direito processual. O discurso de direito processual se apresenta como um sobrediscurso, ou um metadiscurso, no sentido de discurso que recai sobre um prévio discurso que lhe serve de base para o desenvolvimento (25). O discurso jurídico processual é, portanto, um discurso que tem a sua base em um discurso de direito material. É certo que a idoneidade desses dois discursos se vale dos benefícios gerados pela realização e pela observância das regras do procedimento judicial. Mas, ainda assim, não se pode deixar de perceber a nítida distinção entre um discurso de direito material legitimado pela observância do procedimento judicial e um discurso de direito processual que, além de se beneficiar das regras do procedimento judicial, se sustenta sobre outro discurso (de direito material).
O discurso de direito processual ou, mais precisamente, o discurso que identifica a necessidade de uma técnica processual não prevista na lei, não representa qualquer ameaça à segurança jurídica, na medida em que se baseia num discurso que se apoia nos fatos e no direito material. O discurso processual objetiva atender a uma situação já demonstrada pelo discurso de direito material e não pode esquecer que a técnica processual eleita deve ser a mais suave, ou seja, a que, tutelando o direito, causa a menor restrição possível ao demandado.
Notas
(1) SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 157-172; NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 69-116; ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002. p. 520-543; CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado. Coimbra: Almedina, 2003; SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005.
(2) Segundo Canotilho, para a teoria da eficácia mediata "os direitos, liberdades e garantias teriam uma eficácia indireta nas relações privadas, pois a sua vinculatividade exercer-se-ia prima facie sobre o legislador, que seria obrigado a conformar as referidas relações obedecendo aos princípios materiais positivados nas normas de direito, liberdades e garantias" (Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1992. p. 593).
(3) ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais (na Constituição Portuguesa de 1976). Coimbra: Almedina, 2001. p. 276-277.
(4) CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional, cit., p. 593 e ss.
(5) "O legislador também está vinculado sem mediações aos direitos fundamentais no campo do Direito Privado. Por isso ele não pode restringi-los desmedidamente. Quando o faz, a regulamentação em espécie é inconstitucional." (CANARIS, Claus-Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha. In: SARLET, Ingo Wolfgang [Org.]. Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 238-239)
(6) Nesse caso, portanto, o objeto da vinculação é a lei, o ato do Poder Legislativo, e não propriamente a relação entre os particulares. Como esclarece Virgílio Afonso da Silva, "quando se fala em efeitos dos direitos fundamentais para além da relação entre Estado e indivíduos, muitas vezes se costuma falar também em efeitos dos direitos fundamentais no direto privado ou em outros ramos do direito. Esses efeitos no direito privado - ou nos outros ramos do direito - podem ser, contudo, de duas ordens distintas: há os efeitos na produção legislativa e os efeitos nas relações jurídicas entre os indivíduos" (A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares, cit., p. 68).
(7) É nos casos de aplicação direta que os problemas de harmonização se tornam mais agudos, pois é aí que os direitos fundamentais mais se chocam com a autonomia privada. "A principal questão a ser resolvida nesse ponto é a forma de combinar essa autonomia com direitos fundamentais que, aplicados diretamente à relação entre particulares, tendem a eliminá-la" (SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares, cit., p. 148).
(8) CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado, cit.
(9) Idem, p. 55.
(10) Idem, ibidem; CANARIS, Claus-Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org). Constituição, direitos fundamentais e direito privado, cit., p. 236-237.
(11) CANARIS, Claus-Wilhelm. Grundrechtswirkungen und Verhältnismässigkeitzprinzip in der richterlichen Anwendung und Fortbildung des Privatsrechts, JuS, München, Beck, 1989, p. 161 e ss.
(12) CANARIS, Claus-Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org). Constituição, direitos fundamentais e direito privado, cit., p. 236.
(13) Canaris reconhece que "é evidentemente possível que a própria Constituição estabeleça a aplicação imediata de um direito fundamental nas relações entre particulares", e cita como exemplo, no caso alemão, o art. 9º, III, alínea 2, da Lei Fundamental, na qual restou expressamente afirmada a nulidade de acordos para a restrição da liberdade de coalizão de empregados e empregadores (A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha. In: SARLET, Ingo Wolfgang [Org.]. Constituição, direitos fundamentais e direito privado, cit., p. 235). A Constituição brasileira de 1988, sobretudo no que tange à regulação das relações de emprego - mas não apenas nessa matéria -, é pródiga nessa espécie de dispositivo, como demonstram boa parte dos incisos dos arts. 7º e 8º e o art. 11.
(14) Assim, apenas para citar um exemplo, o art. 7º, XVI, da CF estabelece que qualquer empregado, urbano ou rural, pode exigir do seu empregador a remuneração do trabalho extraordinário superior em no mínimo cinquenta por cento à do normal.
(15) HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998. p. 279.
(16) Canaris, em Grundrechtswirkungen und Verhältnismässigkeitsprinzip in der richterlichen Anwendung und Fortbildung des Privatsrechts, adverte que no direito privado frequentemente defrontam-se interesses que podem ser garantidos como direitos fundamentais. Caso o legislador proteja titular de um direito fundamental, por conseguinte intervém, muitas vezes ao mesmo tempo, na posição de outro titular de direito fundamental. "O exame constitucional, por consequência, orienta-se tipicamente em duas direções: por um lado, a proteção não deve se reter atrás do mínimo constitucional exigido; por outro lado, não deve ser 'excessiva', ou seja, excedente ao proporcional e ao necessário, intervindo nos direitos fundamentais de outros sujeitos privados". No original: "Die verfassungsrechtlich Prüfung geht folglich typischerweise in zwei Richtungen. einerseits darf der Schutz nicht hinter dem verfassungsrechtliche gebotenen Minimum zurückbleiben, andererseits darf nicht 'übermäßig', d. h. mehr als erforderlich und verhältnismäßig, in die Grundrechte des anderen Privatrechtssubjekt eingreifen" (CANARIS, Claus-Wilhelm. Grundrechtswirkungen und Verhältnismässig-keitsprinzip in der richterlichen Anwendung und Fortbildung des Privatsrechts, JuS, 1989).
(17 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel Francisco. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: RT, 2013. p. 823 e ss.
(18) Quando se fala nas eficácias vertical e horizontal, deseja-se aludir à distinção entre a eficácia dos direitos fundamentais sobre o Poder Público e a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares. Existe eficácia vertical na vinculação do legislador, do administrador e do juiz aos direitos fundamentais. Há eficácia horizontal - também chamada de "eficácia privada" ou de "eficácia em relação a terceiros" (Drittwirkung, na expressão alemã) - nas relações entre particulares, embora se sustente que, no caso de manifesta desigualdade entre dois particulares, também exista relação de natureza vertical. A necessidade de pensar na incidência dos direitos fundamentais sobre os particulares, em vez da sua simples incidência sobre o Poder Público, decorre da transformação da sociedade e do Estado. Como escreve Vieira de Andrade, "a regra formal da liberdade não é suficiente para garantir a felicidade dos indivíduos e a prosperidade das nações, antes serve para aumentar a agressividade e acirrar os antagonismos, agravar as formas de opressão e instalar as diferenças injustas. A paz social, o bem-estar coletivo, a justiça e a própria liberdade não podem realizar-se espontaneamente numa sociedade industrializada, complexa, dividida e conflitual". Por isso "é necessário que o Estado regule os mecanismos econômicos, proteja os fracos e desfavorecidos e promova as medidas necessárias à transformação da sociedade numa perspectiva comunitariamente assumida de bem público" (ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais [na Constituição portuguesa de 1976], p. 273-274). O problema que se coloca diante da eficácia horizontal é o de que nas relações entre particulares há dois (ou mais) titulares de direitos fundamentais, e por isso nelas é impossível afirmar uma vinculação (eficácia) semelhante àquela que incide sobre o Poder Público.
(19) A obrigação de compreender as normas processuais a partir do direito fundamental à tutela jurisdicional, e, assim, considerando as várias necessidades de direito substancial, dá ao juiz o poder-dever de encontrar a técnica processual idônea à proteção (ou à tutela) do direito material. No direito alemão, voltando-se especialmente à situação em que os juízos ordinários se deparam com questões processuais de dimensão constitucional, Kirchhof observou, antes da reforma processual de 2002, que "quando as posições jurídicas constitucionais reclamam unicamente a consideração de simples leis positivas, seja na concessão do direito a ser ouvido (art. 103, II, GG), na consideração do juiz natural (art. 101, I 2, GG), ou na garantia à proteção judicial (art. 19, IV, GG), é de se considerar se o legislador não deveria ceder este controle aos tribunais ordinários especializados mais próximos" (KIRCHHOF, Paul. Die Aufgaben des Bundesverfassungsgerichts in Zeiten des Umbruchs. NJW, p. 1497). Lembre-se que, em princípio, os juízos ordinários não fazem controle da constitucionalidade na Alemanha, o qual é feito com exclusividade pelo Tribunal Constitucional. Entretanto, como a análise da constitucionalidade de normas processuais pelo Tribunal Constitucional mitigava muito a efetividade do processo, diante da demora e do acúmulo de serviço trazido a esse Tribunal, parte da doutrina - aí incluído Kirchhof - passou a sustentar que o juiz ordinário poderia decidir sobre violação de direito fundamental processual por parte de norma processual. Tal discussão - frise-se - ocorreu antes da reforma processual de 2002. Nesse ano foi inserido no ZPO (CPC alemão) o § 321.a, que trata do remédio por violação ao direito de ser ouvido. Nessa nova hipótese, o juiz pode entender que a parte recorrente tem razão ou que ocorreu violação ao direito fundamental. Porém, se o juiz entender que não houve violação, o remédio não terá que ser necessariamente encaminhado ao Tribunal Constitucional. Isso somente ocorrerá se o juízo ordinário chegar à conclusão de que o tema tem importância e relevância e, por esses motivos, deve ser apreciado pelo Tribunal Constitucional (ver: RAGONE, Alvaro Pérez. El nuevo proceso civil alemán: principios y modificaciones al sistema recursivo. Revista de Direito Processual Civil, v. 32, p. 357 e ss.). Discute-se se o remédio deve se limitar ao direito de ser ouvido ou deve alcançar outros direitos fundamentais processuais (ver: VOKUHLE, Andrea. Bruch mit einem Dogma: die Verfassung garantiert Rechtsschutz gegen den Richter. NJW, p. 2.193-2.264; MÜLLER, Friedrich. Abhilfemöglichkeiten bei der Verletzung des Anspruchs auf rechtliches Gehör nach der ZPO-Reform. NJW, p. 2747; KROPPENBERG, Inge. Zum Rechtsschutzbereich der Rüge gemäâ § 321 a ZPO. ZZP, v. 116, p. 421-445). Decisão plenária do Primeiro Senado do Tribunal Constitucional (BVerfG), de 30.04.03, ordenou ao legislador a demarcação dos limites, pressupostos e detalhes do remédio do § 321.a. Afirmou-se que este parágrafo não consegue conciliar na prática a correta distribuição de tarefas entre a justiça constitucional e a ordinária e, assim, conferiu-se ao legislador prazo para corrigir o defeito ou a falha. Respondendo à ordem do Tribunal Constitucional (BVerfG), o Legislativo editou a Gesetz über die Rechtsbehelfe bei Verletzung des Anspruchs auf rechtliches Gehör.
(20) O direito à tutela jurisdicional deve ser visto como "um direito de protecção do particular através de tribunais do Estado no sentido de este o proteger perante a violação dos seus direitos por terceiros (dever de proteção do Estado e direito do particular de exigir essa protecção)" (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2002. p. 463).
(21) CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, cit., p. 464.
(22) Adotando-se a terminologia de Wesley Newcomb Hohfeld, Fundamental legal conceptions as applied to judicial reasoning (originalmente publicado em 1919).
(23) MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo: curso de processo civil. 7. ed. São Paulo: RT, 2013. v. 1. p. 75 e ss.
(24) MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo: curso de processo civil. 7. ed. v. 1. Cit., p. 125 e ss.
(25) Esclareça-se que a terminologia "metadiscurso" ou "sobrediscurso" não significa que o discurso do direito processual seja um discurso acerca das regras do discurso que regem a interpretação e a aplicação do direito material. Este, em rigor, é um problema de metodologia do direito, ou da teoria do discurso jurídico. Aqui, a alusão a metadiscurso tem um objetivo menos ambicioso: ela pretende demarcar que o discurso do direito processual opera num plano diverso ao de direito material, sem que, contudo, seja dele independente.

* Texto base da palestra pronunciada na Universidade de Lisboa, em novembro de 2013.

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