No âmbito dos Juizados Especiais Cíveis, tem sido comum o julgamento, por juízes leigos, de Embargos Declaratórios opostos contra as sentenças homologadas pelos julgadores togados. Tais recursos acabam sendo decididos através de projetos, que são posteriormente levados à apreciação de juízes togados e, finalmente, são ratificados e publicados, momento a partir do qual passam a surtir efeitos, inclusive no que diz respeito à contagem de prazos.
Todavia, em nosso sistema jurídico, não pode o juiz leigo realizar tais julgamentos, ao contrário do que infelizmente está se transformando em rotina no âmbito destes Juizados.
Todavia, em nosso sistema jurídico, não pode o juiz leigo realizar tais julgamentos, ao contrário do que infelizmente está se transformando em rotina no âmbito destes Juizados.
O
primeiro argumento apto a embasar a tese ora defendida vem de uma das
disposições contidas no próprio Código de Processo Civil. Nesta esteira, o
artigo 162 da Lei Adjetiva prevê que “os atos do juiz consistirão em
sentenças, decisões interlocutórias e despachos” e, logo em seguida, seu
parágrafo 1º traz a definição de sentença: “é o ato do juiz que implica
alguma das situações previstas nos artigos 267 e 269 desta Lei”.
Também
cabe ressaltar que o artigo 7º da Lei 9.099/95 afirma que os juízes leigos são
auxiliares da Justiça, ao contrário, por óbvio, dos juízes (togados). Em
consonância com o CPC, portanto, não cabe ao julgador leigo proferir sentença
ou qualquer outra decisão arrolada no artigo 162 do mencionadoCodex,
pois apenas ao Juiz (togado, investido de poder jurisdicional) cabe tal tarefa.
Logo,
por uma conclusão lógica, se depreende que em nenhuma hipótese o projeto de
sentença confeccionado por juiz leigo pode ser considerado como uma sentença.
A
um, porque a própria Lei 9.099/95 aponta, em seu artigo 40, que ele deve ser
submetido ao juiz togado, passando a surtir efeitos apenas após a homologação
por parte deste. A propósito, como bem leciona o professor Alexandre Freitas
Câmara[1],
“pode esse artigo gerar no intérprete a falsa ideia de que o juiz leigo
poderia proferir sentença, uma vez que fala o seu texto que ele proferirá ‘ a
sua decisão’. Assim, porém, não é. Ao juiz de direito (togado, como diz a lei)
cabe proferir sentença. [...]
Tendo
o juiz leigo presidido a instrução probatória (o que é
possível em razão do disposto no artigo 37 da Lei 9.099/1995), caberá a
ele elaborar um projeto de sentença. Esse projeto é imediatamente submetido ao
juiz togado que, se com ele concordar, o homologa por sentença. A homologação é
o ato do juiz (de natureza sentencial) que adota
como conteúdo o ato homologado (ou seja, no caso ora em exame, o
projeto de sentença elaborado pelo juiz leigo). É o fenômeno que se dá,
por exemplo, quando o juiz, por sentença, homologa uma transação. A sentença é
o ato do juiz, mas o conteúdo desse ato é a transação das partes. [...]
Assim
sendo, quando o juiz togado homologa o projeto de sentença do juiz leigo
ter-se-á uma sentença (ato do juiz togado) cujo conteúdo é o projeto de
sentença (ato do juiz leigo). A sentença, porém, terá de ser
proferida pelo juiz togado, e é o ato deste que exerce, no processo, a função
processual que à sentença cabe.”
E,
a dois, pela simples razão de que a decisão emanada do juiz leigo não implica
nenhuma das situações previstas nos artigos 267 e 269 do CPC, como bem exige o
artigo 162 da Lei Processual. Por sinal, o projeto de sentença não surte
qualquer destes efeitos justamente por não ter ainda sido homologado, o que só
pode ser feito pelo julgador togado, devidamente investido de poder
jurisdicional.
Para
que se possa enxergar de formar mais límpida, é útil a menção de um exemplo
prático no qual o projeto do juiz leigo (como era de se esperar) não surte os
efeitos do artigo 267 do CPC. Imagine-se que, após o juiz togado proferir o
despacho inicial, ordenando a citação do réu, ele determine a distribuição dos
autos a um dos juízes leigos sob sua supervisão. Feita tal distribuição e, já
após ter sido apresentada a contestação pelo réu, o julgador leigo entende pela
ausência de uma das condições da ação, o que, por conta do contido no inciso VI
do artigo 267, levaria à extinção do processo (sem resolução de mérito).
Entretanto,
ainda que o juiz leigo assim entenda e o faça constar em seu projeto, nenhum
efeito imediato poderá trazer às partes, justamente porque ele não está
investido de poder jurisdicional. Deste modo, o projeto deve se apreciado pelo
juiz togado e, caso este concorde com o parecer elaborado, poderá, através da homologação,
“transformar” o projeto em sentença. Mas, ainda, caso discorde do entendimento
do julgador leigo, poderá proferir decisum totalmente diverso,
de acordo com suas próprias convicções.
Assim,
se o projeto de sentença, que é a decisão proferida pelo julgador leigo, não
surte os efeitos dos artigos 267 e 269 do CPC, não pode ser considerado
sentença e, se não o pode, muito menos poderia este mesmo julgador apreciar os
aclaratórios opostos contra este decisum, já que se trata de um
recurso dirigido ao mesmo juiz que prolatou a sentença.
Conveniente
citar, neste contexto, as conclusões de Sônia Márcia Hase de Almeida Baptista,
a qual, parafraseando as lições de Moacyr Amaral Santos, aponta que, "o
fato de visarem os Embargos de Declaração à reparação dos prejuízos que os
defeitos da sentença trazem ao embargante, os caracteriza como recurso. Recurso
para o mesmo juiz que proferiu a sentença".[2]
De
toda sorte, o juiz prolator da sentença permanece sendo o juiz
togado, o que indubitavelmente atrai para si a competência de analisar os
embargos de declaração.
A
este respeito, é uníssono na doutrina pátria o entendimento de que o mérito dos
embargos aclaratórios deve ser analisado pelo próprio prolator do ato
embargado. Neste sentido, clara é a lição de Araken de Assis[3]:
“Compete
ao órgão judiciário que proferiu o provimento embargado julgar o recurso. Só o
autor do ato poderá explicá-lo ou complementá-lo a contento. É nessa ideia
simples, mas pouco flexível e enganosa, que repousa a afetação da competência
para julgamento.”
Portanto,
como bem se nota, apenas pode decidir se a decisão embargada carece ou não de
integração ou esclarecimentos o próprio julgador que a proferiu. E,
indiscutivelmente, no âmbito dos juizados especiais, é o juiz togado quem
profere a sentença, não havendo que se falar em hipótese alguma que a prolação
de sentenças compete aos juízes leigos.
Sobre
o assunto, já decidiram as Turmas Recursais do estado do Paraná no sentido de
que “o juiz Leigo
instrui o processo e emite um parecer, e não sentença” e no de que a
sentença é prolatada “pelo Juízo
togado, ao proceder o ato de homologação do projeto de decisão, apresentado
pelo Juiz Leigo, na melhor dicção do artigo 40, da Lei 9.099/95”.
Posicionamento
em consonância com o da 4ª Turma Recursal do Rio de Janeiro, que no julgamento
do RI
0052591-73.2010.8.19.0004 decidiu pela nulidade do julgamento
de embargos aclaratórios realizados por juiz leigo:
“Provimento
do recurso de fls. 100 para anular o julgamento dos embargos declaratórios por
projeto do Juiz Leigo. Pelo exposto voto pelo Provimento parcial do recurso de
fls. 100 para anular o julgamento dos embargos declaratórios elaborado por juiz
leigo. Os declaratórios devem ser julgados pelo Juiz Togado e não por Projeto
como àquele de fls. 98. Sem honorários.”
Assim,
uma vez que quem evidentemente profere a sentença, ainda que em processos sob a
égide da Lei 9.099/95, é o juiz togado, apenas a ele compete apreciar os
declaratórios, não havendo a possibilidade de que o juiz leigo venha a julgar o
mérito de tal espécie recursal.
Isso
decorre do simples fato de que o Juiz leigo sequer profere sentença. Ora, se
não o faz, como poderia integrá-la ou complementá-la através do julgamento de
embargos declaratórios?
Aliás,
se fosse esse o caso, os próprios prazos se iniciariam tão logo as partes
tivessem ciência do conteúdo do projeto de sentença, devendo ser considerados
intempestivos os recursos interpostos levando-se em conta a data de publicação
da sentença homologada (o que não é aceito pela jurisprudência RI 20060005955-0,
julgado pela TRU do Paraná).
Não
sem razão, bem ensina Luís Eduardo Simardi Fernandes que ninguém melhor para
sanar os vícios existentes em uma decisão do que o próprio prolator, portanto,
ainda de acordo com o professor[4],
“embora o diploma processual não deixe clara essa situação, a verdade é que
o julgamento dos embargos de declaração deve competir, em primeiro grau, ao
juiz prolator da decisão embargada e, em grau superior, ao órgão responsável
por ela.”
E,
como já exposto, não restam dúvidas de que não é o juiz leigo quem profere
sentença, mas o togado, este sim devidamente investido de poder de jurisdição.
Caso contrário, não haveria necessidade de homologação dos pareceres elaborados
pelos juízes leigos, que são verdadeiros auxiliares daqueles que integram os
quadros da magistratura.
Seguindo
esta linha de raciocínio, portanto, os embargos devem ser julgados por quem
proferiu a decisão, tendo em vista que apenas este Juiz conhece os reais
motivos e a intenção precípua daquele pronunciamento. E, no caso dos juizados,
após o juiz leigo entregar seu projeto de sentença para apreciação do Juiz
togado, este último, ao ler o projeto, caso perceba a existência de qualquer
vício ou incompreensão naquele escrito, tem a faculdade de fazer as
modificações adequadas.
Ora,
caso note a existência de qualquer dos vícios elencados no artigo 535 do Código
Processual, deve integrar, ele próprio (juiz togado), o decisum.
Todavia, se não o fez, é porque considerou que a sentença estava apta a ser
entendida e interpretada pelos demais interlocutores. Assim, se em uma primeira
leitura — aquela feita antes da homologação — foi capaz de compreender todo o
contido na decisão, e não fez qualquer alteração, com a oposição dos
aclaratórios, deve responder às pretensões da parte, não havendo que se cogitar
em um reenvio dos autos ao julgador leigo.
Desta
feita, como bem se observa, a conclusão a que se chega, sem que paire qualquer
dúvida no ar, é a de que o juiz leigo não profere sentença, mas apenas auxilia
o juiz togado, elaborando um parecer sobre o caso, ao qual corriqueiramente se
dá o nome de projeto de sentença. Ou seja, sua própria nomenclatura demonstra
que tal proposta carece de qualquer eficácia jurisdicional, eis que, sem a
devida homologação, não produz qualquer efeito jurídico. Por consectário
lógico, não sendo o Juiz leigo o prolator das sentenças, mas sim o Juiz togado,
apenas a este cabe analisar os aclaratórios.
Entendimento
adverso levaria a graves incongruências e incompatibilidades no sistema dos
Juizados. Imagine-se, por exemplo, que o juiz togado opte por modificar o
parecer elaborado pelo juiz leigo. Caso se entenda que a competência para
apreciar eventuais embargos declaratórios é daquele que confeccionou o projeto
de sentença, se permitiria que ele novamente alterasse a decisão prolatada por
julgador devidamente investido de função jurisdicional.
O
que se percebe é que no momento em que o juiz leigo revisa a sentença proferida
pelo juiz togado, tal qual se tem verificado em inúmeras ações, acabam por ser
afrontados tanto o artigo 5º, LIII, da Constituição Federal quanto o artigo 536
do CPC, ocorrendo uma clara violação ao princípio do juiz natural, o qual foi
expressamente assegurado pelo legislador constituinte.
Portanto,
a fim de que absurdos jurídicos deste tipo não se proliferem dentro do sistema
dos Juizados Especiais, que tão útil tem sido aos cidadãos e ao próprio Poder
Judiciário, os magistrados que supervisionam as secretarias destes juízos devem
impedir que após a publicação de suas sentenças os autos retornem aos
julgadores leigos.
E,
ainda, sempre que as Turmas e Câmaras Recursais deste sistema se deparem com
situações disformes como as aqui tratadas, devem decidir pela anulação dos
julgamentos dos embargos declaratórios realizados por juízes leigos, ainda que
posteriormente homologados por julgadores togados, eis que se trata de criação
totalmente incompatível com nosso sistema jurídico.
[1] In Juizados
Especiais Cíveis Estaduais, Federais e da Fazenda Pública uma abordagem
crítica. - 7. Ed. – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, pp. 115-116.
[2] Santos, Moacyr Amaral apud Baptista,
Sônia Márcia Hase de Almeida. Dos embargos de declaração. - 2. ed. rev. ampl. -
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993. (Recursos no processo civil; v.
4) p. 64.
[4] In Embargos
de declaração: efeitos infringentes, prequestionamento e outros aspectos
polêmicos. São Paulo: RT, 2012, pp. 128-129.
Lara Bonemer
Azevedo da Rocha é advogada no escritório Medina &
Guimarães Advogados Associados.
Otávio Augusto
Vaz Lyra é advogado no escritório Medina & Guimarães
Advogados Associados.
Revista Consultor Jurídico, 13 de abril de 2013
Disponível em:Artigos
13abril2013
JUIZADOS ESPECIAIS